Goldfrapp, “Utopia”, in https://www.youtube.com/watch?v=QUB7e3BtnvU
Não era dado ao heroísmo, nem gostava de alardear
coragem – não achando, sequer, que a coragem era um predicado em falta na abundância
de covardes. Não queria exibir uma doce loucura que o adestrasse na diferença
dos demais, muito acomodados na planura que renegava importunações. Não queria ostentar
medalhas conferidas por bravura, que essas não são mantimento para a alma e a
imagem que os demais de si faziam não era fazenda que obstruísse o sono. Não era
ambição ser líder de fação, nem que fosse por interposta pessoa.
Não colhia nenhuma das hipóteses expostas – nem de
outras que se pudessem propor, arregimentando lugares-comuns do comportamento
do comum dos mortais. (E antes que se julgue que por aqui fazia a diferença: solenemente
proclamava não estar nos antípodas do “comum dos mortais”.) De parte todas as
hipóteses arbitráveis, sobrava o fundo mais fundo: gostava de falar em nome próprio.
Evitava citações de outros. Até as paráfrases eram travadas no limite do possível;
depois desse limite, onde já nada se inventa e outros antes se pronunciaram,
era impossível a abolição das paráfrases.
Gostava de acordar de peito aberto. De não ocultar o que
queria dizer. Ou sentir. Julgava-se perante um imperativo que sobre si pesava: tinha
de ser o que se fizera, como se fizera, sem arremedos que eram reconfigurações
pelo estalão de outros. Fazer de conta, era hipótese que o descompunha por
dentro. Nem que os descaminhos da fantasia convidassem à ilusão e as medidas
fossem tiradas pelos alinhavos que os olhos não reconheciam, o sangue fervia de
incómodo se a deslealdade fosse reificada. Por isso, recusava o papel de ator.
Só que, às vezes, para não abrir feridas que depois
tinham demorada cicatriz, procedia de acordo com outro método. Em desconfiando
que os sintomas pressagiavam dilacerantes dores, lobrigava nas traves paralelas
da matéria sensível. Nessas alturas, continuava a dar a cara, mas de lado. Como
se sulcasse nos interstícios do real, consciente de que as consumições locupletam
o espaço que medeia entre estar vivo e o caixão da desrazão.
Fosse como fosse, era em nome próprio que se depunha
perante o cosmos. Recusava ser testa de ferro. Negava ser partição de si mesmo em
múltiplos alter egos. Já era consumição suficiente o que habitava em si. Só
fazia sentido assumir o eu de que sabia existência. E dava a cara por essa
causa.
Sem comentários:
Enviar um comentário