31.5.17

Texto ao contrário


Cigarettes After Sex, “Apocalypse” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=CdtfjCoYw1A    
Era o texto do avesso: verificadas as constantes que se sobrepunham (e por isso tomavam o nome de “constantes”), mas que, por serem constantes, desinteressavam, a ossatura frenética convocava os abalos telúricos de onde sairiam, emergentes, as exceções – as novidades. O marasmo desinstalado faria corar de vergonha, por manifesta impreparação para o oposto do marasmo, os seus habituais cultores. Nada disto interessava se não fossem os violinos escutados em surdina, como se estivessem a ser tocados algures, num sítio escondido, por músicos sem rosto. O som não era melífluo, como apraz às multidões que apenas conseguem emprenhar música desinteressantemente melodiosa.
No vagar do tempo, enquanto os morcegos estavam de atalaia à noite para despertarem do torpor, as crianças saíam da escola e mostravam um fulgor que não lhes fora conhecido nas horas prévias. Os progenitores, aguardando do lado de fora da escola, pareciam apascentar os mimosos petizes, levando-os pela mão para não serem – vá-se lá saber – vítimas de azougados caçadores. Um homem passou nessa altura, vestindo gabardina comprida abotoada até cima. Estava calor, um calor impróprio para o mês que o calendário mostrava. Num acesso de lucidez – ou apenas produto da distração de quem apenas tinha olhos para os petizes que saíam da escola – a pose do homem não motivou desconfiança. Ainda bem. Lá dizem os cânones que até prova em contrário, todos são inocentes.
Depois da noite, quando as cores da alvorada se ensaiavam num arrebatamento singular, um boémio cambaleava pela rua fora, ainda abraçado a uma garrafa que entornou. A garrafa seria depósito de uma qualquer bebida branca e o rapaz estava em plena embriaguez. Não ligava às pessoas que já tinham deposto o sono e se apressavam para o trabalho. O mesmo acontecia, mutatis mutandis. O rapaz abrandou o passo e inclinou o dorso para a parede de um prédio. Vomitou compulsivamente. E depois ainda teve força para dizer: “não há nada mais belo do que a luminosidade da alvorada.”
Um polícia, ainda de turno, passou ao largo. O sono era tanto que as dificuldades do rapaz lhe foram indiferentes. (Ou foi por ter ouvido o arroubo poético do rapaz e ter concluído que um ébrio não tem condições para poetizar. Como estava errado, o senhor agente. E ele sabia-o de cátedra.)

30.5.17

Terreno minado


Aimee Mann, “Save Me” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=HrtMemDVp-k    
Os pés percorrem alegremente o chão que teve inscrição messiânica. Depois da peregrinação, os ingredientes da transformação estão todos depositados nas mãos do agente, à sua disposição, para ele com eles fazer o que aprouver. Tecem-se loas ao processo, apesar de não ser expedito e de exigir esforço, meditação, paciência, sacrifício. Arranjam-se mezinhas solidárias, para o agente não se achar imerso numa solidão conturbada que o possa demover de levar ao fim as intenções. Os demais não perdoariam: nos tantos olhares vertidos sobre o agente, levita a exigente responsabilidade.
A páginas tantas, o agente que percorre o chão prometido parece que o faz em nome próprio e em nome de todos os que nele depositam um atento olhar e um módico de esperança. Ninguém percebe que o esforço é individual e individuais se devem manter os resultados da empreitada. Mas as pessoas são ávidas no espiolhar do recolhimento, que devia ser um ato de isolamento e deixou de o ser. A humanidade não consegue deixar de lado a propensão para coletivizar tudo e mais alguma coisa. Até os atos que deviam pertencer à reclusão do pensamento e à solidão da obra.
Há culpas a repartir. O agente que parte para o terreno prometido não consegue esconder a aventura dos demais. Assim como assim, em anteriores demandas o agente esteve na posição de observador exterior; também foi juiz interessado no desempenho dos agentes que puseram pés no chão prometido. As culpas também recaem sobre os que se arvoram no papel de observadores na exterioridade do agente. É a indeclinável suposição de alvitrar sobre a existência que é exterior aos observadores, que supõem legitimidade para incarnarem juízes. A teia em que se embebem é um emaranhado a que se não vê destino fácil.
No fim de contas, o chão pisado pelo agente é terreno minado. E ele sabe-o. Deitou-se a jeito de os olhares outros sobre ele indagarem, constituindo-se supostos juízes sem mandato reconhecido. A osmose faz subir a maré dos sobressaltos. Do lado do agente, que tem os pés ferventes pelo paradoxo do terreno minado (que até à conclusão da empreitada assim permanece). E do lado dos que o observam do exterior, seus juízes implacáveis que se preparam para partilhar o triunfo da empreitada e para o atirar aos tubarões em caso de malogro.  

29.5.17

Distopia


Da Weasel e Manel Cruz, “A casa”, in https://www.youtube.com/watch?v=bL6d7O2vQic    
Idealistas empenhados por uma utopia que amesenda a pedido. Não disfarçam o desgosto pelo que os olhos decantam. Não perfilham o chão travestido de iniquidade. Insurgem-se contra as aberrações que retiram justiça ao mundo. Ambicionam um sítio diferente para alojar as pessoas, sem que esse lugar seja um atropelo constante à vontade das pessoas, sem que esteja perenemente a destruir as ambições que são legítimos espelhos possuídos pelas pessoas.
Utopias de diversa linhagem. Mas as utopias antecipam uma decadência: não se sabe como será a transfiguração necessária para arrotear o caminho até se chegar à utopia. Não há roupagem que tenha serventia, a não ser uma, desconhecida, que congemina a fazenda que dá corpo às utopias. Mas se é desconhecida, como podem os emissários propor a sua superioridade?
Talvez alinhavem um método por tentativa e erro. Talvez se proponham extinguir os piores traços dos sistemas vigentes e, por pequenas tentativas, prover a aproximação da utopia. Talvez estejam apenas reféns da rebeldia de quem quer descoser as linhas por que se costura o mundo. Entre tantas conjeturas, desconfia-se da bondade das utopias. Não das utopias em si mesmas consideradas; desconfia-se do método para arrendar o espaço necessário ao seu vencimento. Não está em causa o vagar implícito, na provável (ou improvável, depende do ponto de vista) consagração da utopia se ela se conseguir sobrepor ao horizonte que desenha os contornos do que agride o olhar. E também não está em causa o húmus em que medram as ideias que dão corpo às utopias. É o método que incomoda. O método: a incerteza perturbante, a violência sem pudor. E sobressalta a incerteza inata às utopias: elas nunca foram experimentadas, não é possível aquiescer sobre os seus efeitos (se não no palco onde impere a especulação, ou em laboratórios que não obedecem à comprovação).
As utopias podem representar a sua própria distopia. Que fique bem notado: a associação de ideias não é uma exortação à normalidade instituída. Ela dispõe, no tabuleiro onde somos peões, inúmeros ingredientes que motivam um olhar de esguelha, tremendamente desconfiado. Os mais descontentes não têm medo de substituir o existente por uma utopia, por mais incerteza que ela traga. Não estou seguro que esse método não adultere a utopia, que aparece mascarada de distopia.
Mal por mal, a distopia corrente já é conhecida.