30.11.18

Bacalhau há Braz


The Art of Noise, “Paranoimia”, in https://www.youtube.com/watch?v=6epzmRZk6UU
          Chegou à porta do infantário com a filha, como acontecia todas as manhãs. Ao tocar à campainha, os olhos esbarraram na ementa (não por acaso afixada ao lado do intercomunicador). Naquele dia, as crianças iam comer “bacalhau há Braz”. Pensou: não é mau manuseio do idioma, não senhor, para um estabelecimento de ensino. Uma vez dentro do infantário, chamou a responsável (que coincidia com a proprietária). Perguntou, com um propositado ar de desdém, se ao mesmo tempo que as crianças iam ter bacalhau como repasto o almoço seria acompanhado por um palhaço de nome Braz. A senhora fez um esgar de surpresa e disparou: 
- Não entendo. O que quer dizer?
- Quero dizer que a senhora se esqueceu de interceder por uma vírgula entre a palavra “bacalhau” e o verbo “haver” que precede o nome do – julgo eu – palhaço chamado Braz.
- Continuo a não perceber. Onde quer chegar?
- Depois de deixar a minha filha e abandonar o seu estabelecimento, quero chegar à primeira papelaria para comprar um corretor líquido e uma esferográfica preta.
-  Por favor, clarifique essa linguagem cifrada.
- Deve ser da mesma ordem de grandeza da destreza de quem escreve as ementas afixadas à entrada.
A senhora começou a perder a paciência. E nem os pergaminhos de aspirante a personagem bem cotada na “sociedade” conseguiram domar alguma mostarda que, notava-se, começou a subir ao nariz.
- Se está a gozar comigo, escolheu o dia errado.
- Está mal disposta? (perguntou, sem conseguir reprimir um tom levemente irónico, que não passou despercebido e detonou a ira mal contida na responsável do infantário).
- Fiquei agora.
- Não me diga que foi esse acesso de má disposição provocado pela minha interpelação...
- O que acha?
- Que o palhaço Braz deve ser tão famoso que até o chamam para acompanhar o bacalhau servido ao almoço. Isso é para convencer as crianças a comerem bacalhau?
- De uma vez por todas, explique-me o que se passa com o bacalhau e o palhaço Braz.
- A senhora vistoriou a ementa afixada à entrada?
- Não precisei. Eu é que a escrevo.
- Ah! Está tudo explicado. Deixe-me dizer que ao olhar para a ementa afixada à entrada fiquei com a ideia que o bacalhau convocou o Braz para a refeição.
- ...(com ar atónito e afogueado, sentindo que estava a ser escarnecida.)
-  É o que depreendo. Pois se o verbo haver (há, com “h” é do verbo haver, não é?) vem a seguir ao bacalhau, é porque o bacalhau está a anunciar que há um Braz a acompanhá-lo. Parto do pressuposto que não mataram nenhum Braz para povoar o bacalhau como acompanhamento – nem admitia a possibilidade de os educandos serem introduzidos à antropofagia...Se me permite o conselho gramatical: se é este o caso (a visita do Braz à hora do almoço), coloque uma vírgula à frente do “bacalhau”.
- Estou cada vez menos a perceber o que me está a dizer. Até parece que está a falar estrangeiro.
- Imagino que sim, que este idioma, e esta gramática que é minha, sejam estrangeiros para a senhora.
- Lá está outra vez a abusar no cinismo. É incorrigível!
- De todo, minha senhora, de todo. Peço desculpa se a abespinhei. Permita-me só um pedido: ao menos que valha a pena, a presença do palhaço Braz a acompanhar a refeição. Se tiver conseguido convencer a minha filha a gostar de bacalhau, perdoo-lhe o resto.
- Perdoa-me o quê?
- Vá ler a ementa com olhos de ver e amanhã voltamos a conversar. Da parte que me toca, perguntarei à minha filha se o Braz palhaço tornou comestível o bacalhau de que ela não gosta. E depois, talvez tenha umas vírgulas para trocar em abono de um desconto na propina – ou uma sugestão para não confundir o verbo “há” com a contração da proposição “a” com o artigo definido feminino singular “a”, que resulta em “à”...

29.11.18

Clorofórmio, “a bem da nação” (short stories #74)


LCD Soundsystem, “You Wanted a Hit” (Live on Austin City Limits), in https://www.youtube.com/watch?v=_1c1zhV3vHk
          Que smoking impecavelmente engomado. Que vestido de lantejoulas milimetricamente cintado no corpo elegante, feito à medida do vestido (e não contrário). Que néones deslumbrantes, o pináculo da sociedade efervescente e dos não comezinhos fazedores de modas e de opiniões. Que universo resplandecente, porventura os seus atores imunes aos achaques da humanidade, todo ele no pesponto da irradiação dos seres cuja perfeição foi feita à prova de bala. Que palco acetinado por onde desfila apenas o escol. Que festividades onde todos olham para todos e nenhum olha por si. Que deslumbramento feérico onde se colhe o húmus da frivolidade. Que pertences parasitas, que se encostam perenemente ao estatuto para obterem prebendas e sinecuras apenas pelos pergaminhos que ostentam em público. Que esgoto serventuário de figurões impantes, beócios indistintos, apedeutas, acéfalos seguidores uns dos outros, poupando no vocabulário usado ora para não escorregarem para a herética crítica, ora por manifesta incapacidade. Que passadeira simultaneamente reluzente e puída, o reluzente ocultando o puído das bainhas de quem se ostenta no centrípeto lugar que cativa as atenções. Que figuras fulgurantes se soerguem na espuma oca que habita nas páginas das revistas da especialidade, e depois se evaporam quando a maré deixa de os trazer no protetor regaço. Que estultos espécimes, que se fartam de agredir a gramática e a sintaxe. Que indisfarçável vaidade, muralha que esconde fragilidades inconfessáveis por intermediação de um manto de inatacável condição. Que presunção homérica. Que poltrões situados nas margens da infecunda servidão. Que asfixiantes personagens que poluem com seus rostos amplamente sorridentes, dos tais que brancos dentes têm para mostrar, no tribunício altar de onde são sacerdotes e primeiros cultores de um séquito que inventam. Que fantasioso cosmos em que medram peritos assoberbados com a fragilidade do invólucro que os reveste, sem saberem do paradeiro da malha mais funda que se confunde com sua leviandade. Que frondosa casa habitada por escolhidos pela vacuidade de seus estamentos. Que impecável lugar, este, habitado por cidadãos que perdem minutos da sua (desinteressante) vidinha a dar conta dos desenvolvimentos da (desinteressante, mas flamífera) vidinha dos exultantes apóstolos do desanonimato. Clorofórmio, e abundante, em cima deste mapa!

28.11.18

Controlo remoto (short stories #73)


Sigur Rós, “Olsen Olsen”, in https://www.youtube.com/watch?v=j2GjOC79gVI
          Este corpo suado: a transgressão das fronteiras, já o corpo pousado no estertor que limita os despojos da desarrazoada empreitada. Visto à distância, parece demencial. Visto à distância: não se aceitam os despreparos em que o corpo se debate e, todavia, o controlo remoto encaminha-o para o auto das impossibilidades na arena onde o chão parece não ter substância, onde o ar tem uma leveza insólita, onde a pele se emacia na ausência de humidade, onde as palavras se enovelam em seus sentidos paradoxais. E o controlo remoto continua ativo, frenético. O corpo que controla é o corpo próprio de quem manipula o controlo remoto. Nunca terá sido tão acertado usar o verbo “manipular”: o corpo que se emancipou por vontade do seu alter ego que tem o controlo remoto na mão, é um autómato que obedece aos caprichos da vontade do corpo domador. Como se houvesse duplicação de substâncias e o corpo se materializasse numa representação a ele exterior, para ser domado pelo controlo remoto que é depositado nas mãos do corpo dominante. Só para testar os limites a que pode ir o corpo – mas o corpo sujeito ao controlo remoto. Cobaia do apetite do domador corpo, este covardemente acolitado pelo controlo que, à distância, endereça as ordens a que jugaria impossível corresponder se fosse ele próprio, corpo sem véu, sujeito à experiência. E o corpo exsudado cambaleia, extenuado, no limiar dos sentidos. Mesmo no precipício do desmaio, o corpo experimentado ainda arranja forças para balbuciar que já não aguenta mais, convocando piedade. O corpo dominante, na implacável arena da tortura, quer saber dos limites. Não capitula perante a imagem compungida do corpo outro que se debate com dores excruciantes, não se percebendo se o suor em que se banha é o substituto da voz que, calada, não pode clamar por comiseração. Com o controlo remoto na mão, prossegue a maldade praticada sobre aquele seu corpo representado em holograma. Não se importa que possa perder uma vida, já não distinguindo o que se passa de uma simulação. Continua convencido que é como os gatos, com sete vidas para atirar como se fossem os dados lançados ao tabuleiro onde decorre o jogo. Ninguém lhe disse, em aclaração dos céus embaciados, que não é um gato. (E nem os gatos têm sete vidas.)

27.11.18

As freirinhas que vestiam viuvez mal se punha o outono


Unknown Mortal Orchestra, “Hunneybee”, in https://www.youtube.com/watch?v=IJrKlSkxRHA
No verão, as freirinhas que fazem o percurso entre o convento e um lugar qualquer, estando de regresso meia hora depois, envergam hábitos de branca fazenda. Parecem de linho, o muito fino pano a escondê-las dos dias soalheiros e não insuportavelmente tórridos, pois o clima é temperado. 
Mal entra o outono e as temperaturas cercam a dúzia de graus centígrados, é vê-las a passear num hábito negro, pesado, talvez de fazenda dura e cardada, protegendo-as contra os achaques habituais (sem ter a ver com o hábito que envergam) quando as tempestades outonais apanham as pessoas desprevenidas (ou ainda habituadas ao ameno outono, que às vezes mais parece um verão tardio). E se os hábitos veranegos parecem de uma leveza que se opõe aos dias pesados de canícula, tamanha a fina fazenda de que são feitos, os hábitos que rimam com o outono parecem puídos, como se as freirinhas tivessem passado mais tempo no outono e no inverno do que no verão. 
Em compensação, a mudança radical de cor parece não se conformar com a reclusão monástica das freirinhas. Pode ser verdade que o recolhimento, com o farto cortejo de privações, seja uma medida de radicalidade; mas, fora disso, o hábito monástico não quadra com exageros. Tal mudança, como do dia para a noite, operava-se na alteração do guarda-roupa a preceito com as exigências das estações. Pior: a viuvez que passavam a envergar, quando o clima mudava de rosto e se cintava aos plúmbeos dias, pondo carantonhas que eram a fotografia fidedigna desses dias sombrios, essa viuvez parecia um protesto contra a saudade do verão. 
As freirinhas tomavam partido. Não é que seja novidade, pois a filiação espiritual obriga-as a tomar partido dos dogmas e a abdicar de tudo o que os dogmas postulam como proibido. Não deixava de ser surpresa a escolha de um dos lados da barricada: as freirinhas estavam ao lado da imensa maioria que, às primeiras “contrariedades” climáticas – e assim se apodam, pois a chuva e o vento parecem, para os saudosistas do verão, um atentado à natureza – protestam ruidosamente contra a chuva, o vento, o frio, e encarnam personagens sorumbáticas que emparelham com a melancolia que atribuem ao tempo outonal e depois invernal. 
Era uma injustiça. Alguém podia dizer às freirinhas que, no papel de servas de deus e, por conseguinte, mensageiras de boas e esperançosas novas, elas deviam ostentar hábitos de uma alvura imaculadamente noiva, até durante o outono e o inverno. Até porque a alvura é a metáfora da pureza a que são adstringidas e o negrume ressoa a algo demoníaco, com as trevas impróprias para a pureza delas esperada. 

26.11.18

As pontes (short stories #72)


Orelha Negra ft. Orlando Santos, “Since You’ve Been Gone/A Memória”, in https://www.youtube.com/watch?v=nFS4GonXg64
          Do umbigo do crepúsculo não deixo de ver as pontes. Sei-as preparadas, chão constantemente pisado, um oráculo que se deixa contaminar pela sede de avenças. Também pode ser o contrário: as pontes põem em contacto os desavindos. Até nisso são generosas, as pontes. Em vez de os diferentes se acantonarem em seus redutos, ajuizando impossível a discussão, as pontes estendem tapetes para os diferentes saberem das suas diferenças. Não se intui que as pontes sejam parciais. Não tomam partido na contenda. Limitam-se a servir de palco que aproxima os diferentes, convocando a equacionarem as diferenças sem que nenhum deles parta com a sede do vencimento de causa. Tudo o que se quer é que os diferentes saibam de que matéria são feitos os de si diferentes. Da mesma forma que as pontes amansam os rios acelerados que sob elas correm em caudais tumultuosos, também temperam as febres desaustinadas dos irremediáveis discursantes de ideias feitas. Não fossem as pontes, os diferentes continuavam a bordejar margens diferentes. Não seria possível ouvirem-se um ao outro. Talvez apenas processassem os esteios onde medram as suas ideias. As pontes desfazem os dogmas; ou, pelo menos, fornecem matéria-prima para esbater os dogmas: quando os diferentes partem no pressuposto de ouvir quem deles difere, sem estarem aprisionados às bainhas bolorentas de um dogma, subtraem-se ao enquistamento malsão e podem tirar partido do que dizem os diferentes. Não consideram as pontes a hipótese de, desfeitas as divergências, tudo se resumir a um único pensamento, monolítico, castrador, terrivelmente único. Quando os diferentes são cotejados, e quando se apresentam no desembaraço das ideias desempoeiradas, multiplicam-se as diferenças. É muito provável que alguns semelhantes se tornem diferentes. Tudo se torna mais rico. É preferível que haja muitos e diversos pensares do que meia dúzia deles acantonado a matrizes rígidas, ao vurmo dos preceitos que não admitem contestação. Por isso se deseja sempre mais pontes edificadas. Mais passagens entre margens separadas pela geografia. As pontes deviam ser todas património imaterial da humanidade.

23.11.18

Carta branca


Virginia Astley, “A Summer Long Since Passed”, in https://www.youtube.com/watch?v=VozZoFLsQQI
Olhamos pelos interstícios da tarde, quando julgamos que o tempo está por defeito. Assinamos riscos aleatórios na folha branca, que compomos a meias. Não há distração que oblitere o exercício lúdico. É daqueles momentos em que parece que tudo à volta se suspende e podíamos jurar que somos os únicos habitantes do planeta.
Seremos os atores principais, ou meros figurantes – não interessa. Um de nós arrisca a primeira palavra que suplanta os meros riscos desordenados que ensaiavam um desenho sem sentido: “alicerce”. Não é repto alinhavado ao calhas. O outro responde e desenha lentamente a palavra-réplica: “confiança”. É como se fosse um poema a duas mãos (e apenas a duas porque é a soma das mãos compulsadas na escrita, uma de cada um). Repetimos as palavras do outro, na metade da folha que açambarcamos para cada um. Na linha finita, apertam-se as letras para o cabimento da palavra. Nem o alicerce nem a confiança se intimidam com o abismo que é a fronteira da página; se preciso fosse, continuávamos a escrita para as nossas mãos, nelas tatuando as legendas que selam a folha já não em branco.
Perguntas: “precisamos de heróis?”. Digo, sem hesitar, acertando o passo com a nossa genética: “não! Temo-los em nós, caso achemos que é preciso nortear a vida pela bússola de um herói.” Arregimenta-se a vontade para outro par de palavras. Desta vez começo eu: “maresia”. Não precisas de esperar muito para cintar o desafio: “janela”. Não te contentas com uma palavra e, ato contínuo, fazes deslizar vagarosamente as letras que, dizes, compõem a palavra-irmã da por ti escolhida: “manhã”. Ficas à espera da minha palavra para completar a quadrilogia. Acerto o passo com a tua sintonia: “ternura”.
Unimos as pontas que estão desatadas pelo sortilégio das palavras soltas. Detemos o olhar no entardecer que se firma no horizonte, enquanto o sol desmaia na véspera do anoitecer. As mãos entrelaçam-se e sentimos as veias que transportam o sangue em combustão. O vento despenteia os cabelos, mas não damos o flanco. O mar está diante dos olhos a moldar a quimera de que somos fautores. Olhamos para a folha, já não em branco. Observamos as caligrafias diferentes que se unem no pressentimento contínuo, uníssono. O manuscrito sela um contrato com mais valor do que todos os contratos arquivados em notários. E damos conta que, antes do exercício conjunto, antes de depormos as palavras sortilégio, a folha em branco era isso mesmo – uma folha em branco. 
Tomámos uma resolução: demos carta branca um ao outro, e por isso soletrámos, na carta partilhada, com a vaidade do que somos em reciprocidade: alicerce, confiança, maresia, janela, manhã, ternura. Não podia haver carta branca se não fossemos penhores destes motes. 

22.11.18

O foro de novembro


Os Poetas, “Despertar”, in https://www.youtube.com/watch?v=PdGx2y1Jkyc
Estou aqui parado, o carro sobre um chão de folhas outonalmente depostas, e tenho o novembro como testemunha. Não sei se seria melhor dizer que sou observador de novembro. Da sua palidez, meia-tinta entre verão e inverno, já sem ser verão, mas ainda a léguas de se tornar inverno. As pessoas passam na rua. Umas vão para o trabalho, pelo modo apressado. Outras passeiam os seus cães, sem a pressa das primeiras. Estão todas agasalhadas; não sei se é pelo estremunhado que sobrevem ao despertar, ou se se escondem do frio matinal. Talvez exagerem – os que fogem de algo com pressa de chegarem ao trabalho e, por junto, todos os que têm alfândega nos fartos agasalhos. A macieza dos tempos seria conselheira de outros procedimentos. O trabalho não foge. O frio é aparente e sempre uma medida relativa (há outros lugares onde a desrazão se tempera em termómetros agrestes).
Observo este novembro a caminho da sua senescência. O lugar-comum outonal: as folhas caducas que, entre o amarelecido e o vermelho ocre, se desprendem das árvores e preenchem um abundante tapete que se funde com o chão. O chão é o seu cemitério. Árvores à frente, a policromia das folhas: umas ainda timidamente verdes, outras em osmose entre o esverdeado e o acobreado, outras, precoces no envelhecimento, ostentando o acastanhado que é marca de água do outono. Dir-se-ia que o outono acolhe em seu seio o trespassar de todas as feridas legadas e cuida de as anestesiar com a nudez das árvores. Fica tudo à mostra, sem esconderijos. Fica tudo à mostra, à espera da reinvenção de que uma heurística hibernação é zeladora.
Não fujo do outono, nem finjo que se insinua num disfarce. Os relógios não deixam o calendário em pausa. O calendário pode estar pregado à parede, mas as suas folhas não capitulam ao falso êxtase do tempo, que alguns querem anquilosado. Desse ardil não sou refém. Uma medida retrospetiva, de mão dada com um módico de nostalgia, podia açambarcar a ilegítima esperança do tempo retido pelas mãos ávidas de memórias. O outono ajuda a romper o disfarce estéril. Tudo é uma roda viva, com lugares e tempos próprios. Sendo uma roda viva, não colhe avivar a memória com a relapsa esperança da iteração dos tempos. O novembro de agora é sempre diferente dos novembros havidos e será diferente dos novembros vindouros. E esse é o melhor agasalho que podemos dar à existência.
É o foro de novembro. Podia ser a carta foral de outro mês qualquer, com as adaptações necessárias à mudança do palco que o ponha a preceito do mês à escolha. À medida da respiração, do sangue que lateja nas veias, das ideias que se compõem e depois descompõem, dos rostos habituais e dos forasteiros, das páginas abraçadas pelo olhar, das palavras não reprimidas, do contínuo desfolhar de um calendário que é a invencível força da vida.

21.11.18

Às montanhas inacessíveis (short stories #71)


Joy Division, “A Means to An End”, in https://www.youtube.com/watch?v=pPG_TCX2Z0k
          Não fingem, as altas montanhas que não descuidam a vertical impossibilidade no acesso aos demais. As paredes a eito arrumam-se na esquadria da impossibilidade – diz-se. E, contudo, há fotografias de tresloucados (só podem ser, tresloucados), amparados em seu arnês, levitando sobre o vazio, dedilhando as paredes verticais da montanha talvez nunca demandada. Outros dirão: é fotomontagem; o retratado não está nos limites das possibilidades, é um desafio acima da capacidade de qualquer humano. Mas as montanhas não empalidecem perante a voragem de montanheiros que mostram a cobiça na conquista. É um duelo desigual. Por um lado, a montanha, ostentando a sua verticalidade, o alcantilado sobrepeso que é derrota pela certa até para os mais intrépidos. Não está à medida do comum dos mortais superar o desafio das montanhas inacessíveis. Por outro lado, o afoito alpinista arremete contra as impossibilidades e parte à conquista da montanha. É uma luta também desigual, porque a montanha se oferece em sua inércia. É um dado adquirido. Quase, ou mesmo, inacessível; mas a montanha não terça as suas forças, para além da empreitada que é desafiá-la. O aventureiro equipa-se como pode e comete a loucura de desafiar os imponderáveis. Prepara-se. Estuda uma técnica para provar que a montanha não é inacessível, como se faz constar – como concluiria o observador desatento, ao notar o abismo que mais parece um convite à morte. O intrépido montanhista capitaliza a paciência. Ultrapassar uma montanha inacessível (ele recusa-se a usar o verbo “derrotar”, pois parece-lhe um fatalismo que não presta o tributo merecido à montanha) é um ato de coragem com âncora segura, ou o aventureiro lança-se num jogo de morte pela certa. A montanha está lá, quieta – e isso basta para a oferecer num altar das impossibilidades. Na posse de toda a paciência e da necessária perícia, a montanha foi superada. Já não interessa como proeza. Outras montanhas inacessíveis estão mapeadas, à espera de empreitada.

20.11.18

O espelho embaciado (short stories #70)


Cat Power, “Stay”, in https://www.youtube.com/watch?v=f-Tsk-cPXxI
          As mãos acorrentadas à ferrugem ocultam um módico de atenção às homenagens do mundo. Pontes a eito percorridas com o convencimento de proezas são trazidas à colação, como se de proezas se tratasse. Não se convidem as avinagradas planícies, trespassadas pelo estio, vulneráveis ao sol afinado que cresta os vestígios de vegetação. Tudo parece uma tremenda nebulosa. A nitidez das coisas foi açambarcada pelas manhãs estremunhadas – estremunhadas porque são tomadas de assalto ora pelo nevoeiro em riste, ora por dias chuvosos que amputam a claridade; ora por um espelho embaciado. Diante de mim, o espelho em sua bulimia, o espelho embaciado. Não cabe a denúncia destes preparos sem, a seguir, a força braçal cuidar da claridade do espelho. Se é sabido que um espelho embaciado não cumpre sua função, impõe-se o dever de o fazer regressar ao estado que o habilita para a função dele esperada. Não é sabido se a diligência é bastante para devolver a nitidez ao espelho. E que seja: será esse o estado desejado do espelho? Em diletas contrariedades, diz-se que é preferível a ilusão; o seu contrário (o regaço alinhavado pela claridade de um espelho desembaciado) será ingrediente acintoso, uma dor pungente que entra pelos olhos e esfaqueia a carne funda. Que sei eu? Não sou oráculo para aferir, em jogo de cintura divinatório, a vocação da imagem devolvida pelo espelho. Não sei se é boa a sua têmpera, ou se corporiza um cortejo de coisas grotescas. Não posso permanecer no limbo. Exige-se-me uma decisão. Num impulso sem lucidez, vou por onde o instinto ordena. (O que fermenta alguma inquietação, pois não tenho por costume dar o flanco aos instintos – e se deles sei o paradeiro, é para deles me apartar.) Do espelho desocupei as gotículas finas que o tornavam baço. Não sei dizer o que me foi dado a ver. Era uma imensa constelação de imagens, sobrepostas umas nas outras, um ergástulo onde se desalfandegava a matéria-prima do caos. Tomei conhecimento que o caos tem uma imagem eivada de claridade. Não me encomendei ao arrependimento: o caos é desafio por diante, uma agenda preenchida de obstáculos que têm o condão de, por o serem, se prestarem à sua ultrapassagem. É preferível à anemia em que é versado o espelho embaciado. A anestesia é o fingimento mais detestável.

19.11.18

Nem sempre ganhamos, nem sempre perdemos (short stories #69)


Beirut, “Gallipoli”, in https://www.youtube.com/watch?v=knHvi4A8v9Q
Estamos rendidos à quimera das paisagens irrepetíveis. Contamos como ganho. Um ganho inestimável. Podemos não voltar a ser testemunhas presenciais dessas paisagens, delas fazendo caso único. Não é perda. Perda sê-lo-ia para quem delas nunca teve conhecimento. Deixamos os vestígios desses lugares a medrar num lugar especial da memória; é para lá que atiramos as fotografias mentais que impedem o esquecimento. Outro ganho: fica provado que temos uma memória inesgotável. Por mais lugares visitados, não damos conta de se exaurir o espaço para onde vão, emolduradas, essas lembranças. Às vezes, podíamos jurar que guardamos as mnemónicas próprias de um lugar. Mesmo à distância de uns milhares de quilómetros, é como se, através dos odores, da constelação de ruídos e do palavreado ininteligível, esses lugares estivessem ao alcance do corpo. Diremos: esses lugares estão alojados dentro de nós. Quase não precisamos de fotografias, no sentido físico da palavra, para desenhar as impressões que esses lugares deixaram em traço tão vivo. É outro ganho. Ganhamos às fotografias, que são sempre um pedaço inerte dos lugares que se perpetuam no movimento constante que é a sua evocação. Mas nem sempre ganhamos. Vemos imagens de lugares que sabemos existirem por inventariação no atlas, pelas imagens que podemos reter em demandas sobre lugares outros. Ficamos um pouco despedaçados ao saber de lugares que efervescem no desconhecimento. Não capitulamos. Podemos considerar que não levamos de vencida a empreitada, mas não desistimos de alinhavar os desafios que quadram com os lugares que ainda nos hão de ter como nómadas. Não nos julgamos perdedores à partida. As janelas estão todas abertas. Num movimento perpétuo que não cessa de ciciar aos nossos ouvidos os nomes dos lugares que terão nossa demanda. Enquanto não formos apalavrar a existência em lugar próprio desses sítios, não podemos consagrar uma vitória. Mas não quer dizer que estejamos derrotados à partida. O mapa, tal como as janelas vindouras, está aberto, em cima da mesa. Pegamos no lápis e começamos a dedilhar as folhas que se acastelam nas nuvens em que dormem os nossos sonhos. E depois, tudo começa. Outra vez.

16.11.18

O corso anatómico


Mão Morta, “Gumes (Parte V – O Rei Mimado)”, in https://www.youtube.com/watch?v=aDYSB_3K9Dk
- Um dia destes, vi da janela um mendigo a salvar um cão de morrer atropelado.
- Não quer dizer que o mendigo tenha bom coração.
- Essa agora!
- Salvaria o mendigo uma pessoa, se em vez do cão fosse a pessoa a correr o risco de atropelamento?
- Como posso saber? Parto do princípio que sim, o mendigo que salva um cão está disposto a salvar um humano.
- Não tires conclusões precipitadas. O mendigo pode ser um insurgente contra as trapaças que a humanidade (e o mundo em geral) contra ele conspirou. Se for o caso, o mendigo mais depressa socorre um animal que uma pessoa.
- Não posso concordar. Primeiro, estás a partir de uma suposição. E não sabes se ela tem fundamento. Segundo, estás a intuir um comportamento como consequência do pressuposto que tomas como válido. Há mais complexidade, muito mais complexidade. O que transtorna o teu raciocínio linear.
- É possível. Muitas vezes, até os teóricos cujos nomes ficaram imortalizados partem de modelos simplistas para explicarem uma teoria. Propositadamente simplistas, para poderem formalizar o raciocínio.
- Aqui trata-se de um simples ato humano. Tu não salvarias o cão se visses que estava na iminência de ser atropelado?
- Depende. Se pusesse em risco a vida, reprimia o instinto. Fora disso, talvez fosse movido por um impulso de salvação do cão.
- Não respondas já, ainda não tirei as medidas todas aos pressupostos da hipótese. Aqui vai o dado importante: não punhas em risco a tua vida (na salvação do cão).
- Provavelmente, socorrê-lo-ia. Não me peças para dançar ao som de hipóteses. São tantas as vezes em que teorizamos sobre um comportamento e as contas saem furadas, fazemos o contrário do que teorizamos. 
- Concordo. Mas não abdicamos de cerzir uma teia onde cristalizam os comportamentos esperáveis.
- Mesmo assim, não vou dizer que faria uma coisa ou o seu contrário, ou uma hipótese intermédia. 
- Lembro que, lá atrás, foste tu que mergulhaste na complexidade das suposições, o que é, deveras, do foro da teorização.
- Dou-te a razão. Nunca foste atraiçoado por uma incoerência?!
- Esta anatomia terçada, em que se sopesam argumentos diferentes, parece uma discussão montada em palcos diferentes. De alguma forma, um diálogo, não digo, de surdos; mas um diálogo impossível, porque as vozes operam em diferentes frequências.
- Insinuas que não estou ao teu nível?
- Ou o contrário: eu é que não estou ao nível em que colocaste o diálogo. Não te abespinhes! Pergunto de outro modo, para alijar sensibilidades extremadas (pois pareces ter um complexo qualquer contra os canídeos...): se fosse uma pessoa a correr o risco de atropelamento, ias em seu socorro?
- Respondo o mesmo: depende das circunstâncias. Não cometeria a tolice de avançar para a estrada se a salvação determinasse um risco para a integridade física, ou até a morte.
- Voltamos aos pressupostos que instruem as hipóteses: não corrias risco nenhum; era uma questão de ganhos, apenas – caso avançasses para a rua e tirasses, digamos, a pessoa distraída da frente do carro conduzido por outra pessoa distraída.
- Agora quem complexifica és tu...
- E que farias?
- O que me fosse dado a fazer na altura. O que agora responder é irrelevante. Se for para apaziguar consciências (sobretudo a tua...), diria que corria a salvar o cidadão. E muito provavelmente, o cão também. Se me queres tributário da honestidade, não estou capaz de assegurar que, perante o caso concreto, seria a minha decisão.
- Concluímos que não adianta hipostasiar, deixar o pensamento percorrer as muitas variáveis equacionadas. A prática é, definitivamente, adversária da teoria.
- Quase sempre. 
- Pobres os filósofos. É por essas e por outras que os filósofos são tão menosprezados.

15.11.18

Teoria geral da indecisão (short stories #68)


Dead Can Dance, “Act II – The Mountain”, in https://www.youtube.com/watch?v=7em5haBGxz4
(Para ler como o avesso do texto anterior)
                  Um mar, um mar interminável, de indecisões. As dúvidas em cascata entrando pelos olhos como água purulenta. As decisões, procrastinadas. Eram muitas variáveis a entrar nas equações sobrepostas que fervilhavam no palco onde uma decisão se impunha. Muitas vezes, quase decidido a tomar uma decisão, fazia marcha-atrás. Não se sabia se era medroso ou apenas escrupuloso. O que se sabia é que não tolerava más decisões. Tinha medo que elas o fossem antes de decidir sobre que decisão devia tomar. Era como se trouxesse a tiracolo um oráculo com a presciência ideal para sufragar, em dotes de antecipação, o que seria arroteado pela decisão que fosse tomada. Nunca lhe disseram – e ele não terá aprendido – que os oráculos são de aprendiz de feiticeiro, um esoterismo à má maneira dos esoterismos. Continuava sitiado pela indecisão. Uma simples vírgula fora do lugar era estorvo bastante para hipotecar todo um texto. Andava com a vírgula para trás e para a frente, ora a suprimindo, ora a colocando de volta ao lugar que tinha no início da demanda, e não dava o texto por rematado. Em cima da secretária, um amontoado de papeis amarrotados, todos com resoluções inacabadas, decisões à espera de decisão, textos tão rasurados que nem ele percebia, entre a inextricável mancha de texto, o que estava escrito. Vivia afogueado pelo estigma do malogro. Odiava saber que uma decisão podia ser errada. Odiava mais se a decisão arrastasse vítimas inocentes (queria crer que era altruísta). Foi passando pela vida sem grandes decisões de que se recordasse. (Não cabem na contagem as decisões rotineiras, do quotidiano.) O deserto de decisões estava na inversa medida dos arrependimentos que o asfixiavam. Perguntava sempre às divindades se uma decisão recusada não era fértil pasto do arrependimento. As divindades retribuam com indiferença, não devolvendo resposta – o que ampliava a perplexidade que o consumia como um miasma indisfarçável. Um certo dia, pediram-lhe para decidir se, diante da encruzilhada, tomavam a estrada da direita ou a estrada da esquerda. Não tivesse sido levado à força pelos amigos, ainda hoje estava na raiz quadrada da encruzilhada a fazer contas de cabeça.

14.11.18

Má tradução (short stories #67)


Little Dragon, “Sweet”, in https://www.youtube.com/watch?v=VzONcZR3438
         Não pensou duas vezes. E gabava-se. Era como se as decisões repousassem em cima do joelho – e o joelho fosse a parte mais nobre do corpo humano (no que à racionalidade diz respeito). Invariavelmente, traduzia mal as circunstâncias. Era mau intérprete dos acontecimentos, inebriado pelo febril estado de quem não tem tempo para os digerir. Era mau intérprete porque não conseguia ser elástico na gestão do tempo e do pensamento. Ainda por cima, gabava-se: era proeza a velocidade supersónica com que fazia aterrar as decisões. Não conseguia aprender com os erros, convencido que a palavra arrependimento tinha sido banida do (seu) vocabulário – e sem a lucidez necessária para não atalhar conceitos, incapaz de perceber que arrependimento não quadra com a humildade de aprender com as lições pretéritas. A má tradução de tudo começava no diagnóstico. Errado o diagnóstico, acendia o rastilho de uma prescrição também errada. Do altar onde campeavam as (suas) más traduções, empilhava-se um amontoado de equívocos. Sê-lo-iam ao olhar imparcial de um observador exterior. Não era o seu caso. Tinha sempre certezas milimetricamente desembainhadas para todos os pleitos que se colocassem. E, todavia, quem estava de fora, ao menor contacto com o (seu) caso de estudo, percebia a falta de rigor na análise, a incandescência que contaminava a reflexão, a voragem sem freio, a mercê dos instintos, a teimosia em dar dois passos atrás para avançar um pequeno, mas sólido, passo. Os erros eram sempre no exterior dos seus limites. Infalível. Era o paradoxo último da má tradução que tomava conta dele. Não esperava. Dizia: “não tenho tempo”. E, contudo, o que mais sobrava era o tempo, desocupado de outras empreitadas. Um dia, alguém teve a insensata ideia de lhe pedir a tradução de um texto. Assim como assim, orgulhava-se das quase duas décadas que passou a trabalhar no estrangeiro, dizia-se fluente no idioma. Quem encomendou a tarefa acabou a dizer mal da vida. A tradução, feita numa brevidade impressionante, estava repleta de erros. E assim se perdeu um negócio, à conta da superficial entrega a tudo do volúvel campeão das más traduções. 

13.11.18

Dialeto (short stories #66)


Ryuichi Sakamoto, “Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=8tKfYwc4zxA
          Um desenho – ou uns sinais com o selo do olhar – seriam suficientes para apalavrar os sentidos. Seriam o dialeto exclusivo. Penhor de gramática própria, volúvel, enquistada nas regras ditadas pela vontade do momento. As cores teriam significado. H0je, pois amanhã poder-lhes-ia ser atribuído outro significado. O silêncio não seria silêncio. Seria um silêncio tradutor de palavras ricas, um dialeto com aspirações a idioma. Vocabulário feito de signos, gestos, partituras onde musicais estrofes veem vertidas, viagens por lugares nunca demandados, sons guturais da natureza, fotografias numa exposição, o frio e o calor orquestrados pelo clima, a expressividade de um gato que fala através de nós, os códigos sociais de que queremos exílio. Nem que fosse um dialeto restringido à exiguidade das duas pessoas que fundimos ao sermos posse do amor. Já sabemos que há impressões que valem mais que as palavras que possam ser inventariadas. Já sabemos que, por vezes, nos detemos à frente da alvura da folha e as palavras não a querem tingir, pois a alvura da folha encerra em si o paradoxal oposto do vazio que os observadores diriam ser o caso. No dialeto, acastelam-se os sonhos que são sonhados por dentro de sonhos, em palimpsestos com marca registada. Não cuidamos do vento desassisado que ecoa nas árvores, fazendo-as pender assustadoramente. O vento tem vontade própria; a que quadra com a nossa, e imperial, vontade. Inventamos um dialeto para dar corpo à vontade que triunfa por dentro de nós. À vontade do que seja arregimentado pela vontade de que somos tutores. Desse modo emprestamos as cores às estações. Batizamos cidades com a nossa presença. E até a chuva, pretérito imperfeito para a maioria, é uma mercê que contratualizamos em passeios junto ao mar. O mar é testemunha do nosso dialeto. De como damos os braços ao amplexo em que somos uníssono. Por mais idiomas que soubéssemos, nunca nos seria dado a aprender o dialeto de que fomos autores se não o tivéssemos cerzido com as nossas mãos. Não é legado; é um pedestal onde deitamos a sumptuosidade que somos, e esse é um nada maior que todos os mundos juntos. E matamos os fantasmas contumazes, as bermas contaminadas por onde nossos pés se recusam a andar, no gregário estiolar que é, em paradoxal circunstância, viveiro do sublime que somos nós. Pois somos o dialeto de que fomos inventores. 

12.11.18

Antologia (short stories #65)


Einstürzende Neubauten, “Nagorny Karabach”, in https://www.youtube.com/watch?v=hd-6WweqD0Y
          O guarda-livros, tenente empossado das memórias, desconfia das luzes garridas. Talvez seja o murmúrio das violetas levantadas pelo vento, um aroma ardiloso. Talvez sejam as equações não resolvidas a adejar sobre o peito aberto. Os livros estão à espera. Em estantes milimetricamente iguais, armazenados por ordem alfabética. À espera de quem deles se queira servir e provar do conhecimento farto. Cuidam os anciãos do manjar tão cuidado por gerações e gerações. Os livros imortalizam-se. Falam pelas gestas registadas, são delas prova – ou contraprova, quando livros dissidentes rompem com o estabelecido. O guarda-livros está de atalaia. Precata-se contra os fogos ateados constantemente por iconoclastas da incultura. As cinzas, que seriam os despojos desses fogos, evocam o obscurantismo sua lavra. Combinam-se os dizeres alegóricos em mentais manifestações que protestam contra a analogia do medo. O conhecimento é o antídoto do medo. A sua fonte primacial. Talvez nunca se tenha dado conta que há mais páginas de livros do que gente a povoar o planeta. Contudo, os lamentos são ciciados em cada esquina. Através dos lamentos, desfila um cortejo de medos: diz-se que há conhecimentos medonhos, outros que semeiam os rudimentos do medo nos sonhos aprazados. Não se enganem as pessoas: só tem medo do medo quem se refugia do conhecimento, quem patrocina esoterismos sem esteios, ou puras conspirações que fermentam na superstição. Os olhos bem abertos são uma bênção. O tirocínio dos fortes. O guarda-livros chega ao fim do turno. Vai para casa: passou a vez ao sucessor, um discípulo que desde tenra idade se encantou com estantes labirínticas repletas de livros. Porém, não se deita sossegado. Não sabe como vão ser as gerações que estão para vir. Aviva-se o medo pela ideia, contumaz, da apatia em contágio, cavalgando no dorso inerme de uma multidão. O desinteresse pode ser fatal. Dará lugar a um deserto de guarda-livros. Se ninguém proteger os livros, ficamos amputados de uma dose de leão da identidade. O guarda-livros desconfia que é o programa de intenções de alguns pederastas desossados de cultura, embebidos na frivolidade da espuma dos dias sem rasto.

9.11.18

3.500 cm³ (short stories #64)


Rosalía, “Malamente (cap. 1: augurio)”, in https://www.youtube.com/watch?v=Rht7rBHuXW8
Era pedestal, o pergaminho (ele preferia usar “pedigree”, para dar a entender que sabia idiomas). Absolutamente imperativo encontrar comparações, portanto, fazer uma projeção para o exterior e intuir as dissemelhanças. Tinha sempre de sair por cima, triunfante na hermenêutica comparatística. Ato contínuo, era como se estivesse tomado por uma embriaguez colossal, as imagens todas distorcidas, sem dar conta (efeitos do ébrio estado mental): era como aqueles bem-parecidos que se fitam demoradamente ao espelho, num onanismo ufano, encomendando às limalhas do pensamento a observação da superior condição do ser cuja imagem era devolvida pelo espelho. Até que o sortilégio das ilusões, em comandita com um estado de pré-alucinação, fizesse crer que a imagem devolvida pelo espelho era maior do que a imagem nele projetada. E, pobre alma, o desfile de orgulhos não tinha proporção: se não vivesse acantonado na ilusão de si mesmo, se não fosse fautor de um auto-desenho desmedido, teria a humildade de reconhecer que as proezas (se as houvesse) eram esparso retrato de si. Era tudo o seu contrário. Todavia, sentia que era a enseada por onde entrava uma aura só ao alcance dos predestinados. E enquanto os pés se metiam ao desconforto de um caminho alcantilado, à medida que subia a montanha tinha de si a ideia que era maior do que o estatuto seu. O olhar projetado no firmamento, e em sendo o firmamento um plano inclinado sobre o olhar, introduzia o vício de perspetiva. Ninguém o desmentia. Uns, por desinteresse (ele que se amanhasse na altura de recolher os estilhaços, depois de cair em si e reparar que era um eu muito longe da imagem que de si tinha). Outros, porque se entretinham com as alucinações variegadas. Ele tinha ambições volúveis, mas o denominador comum era a ousadia. Fazia lembrar aqueles vaidosos que ostentam motor de dimensões generosas e depois não sabem o que fazer com tamanha volumetria. Um dia, um amigo, em estando desavindo com a manhã e o resto do mundo, deixou cair: “essa cilindrada não é para qualquer um. Só os habilitados a conseguem domar. Desengana-te: não é, manifestamente, o teu caso.” E ele, teimoso com a desinvenção de si mesmo, desviou o assunto, acusando o amigo de inveja e de má-fé. Alheado dos pergaminhos da existência, nem a inconfidência do amigo (um lampejo de realidade) subtraiu a serenidade do sono.

8.11.18

Panteão (short stories #63)


Mitski, “Nobody”, in https://www.youtube.com/watch?v=qooWnw5rEcI
Para os tementes da morte, a palavra panteão devia ser proscrita do vocabulário. Os panteões são a sublimação dos cemitérios, quando os cemitérios continuam a ser lugares de romagem aos mortos. Os tementes da morte não querem saber de cemitérios e, por maioria de razão, de panteões. Admita-se que alguns haja que não querem saber de cemitérios, mas não se importavam de ter morada definitiva no panteão. São os ensimesmados que, da mesma forma que anseiam por um lugar na toponímia local, ou uma estátua póstuma (pois as estátuas só fazem sentido se forem póstumas), poderão alinhavar no estirador de seus sonhos a pertença ao escol que tem acolhimento no panteão. O mal é que o panteão estaria sobrelotado. Obras de ampliação do panteão seriam necessárias, talvez torná-lo mastodôntico. O que amputava a simbologia do panteão, banalizando a sua pertença: era como se esta fosse uma terra de sucessivas gestas de ilustres, numa vulgarização dos ilustres, ou da redefinição da apertada malha que cauciona a pertença ao panteão. Não é desconfiança dos méritos dos concidadãos, das várias gerações que se sucedem no pano da história. Entre o escol, só uma minoria é que tem as portas do panteão franqueadas. Subverter os critérios de aceitação não é o produto da democratização dos elegíveis: a democracia não serve para tanto, melhor se falando em banalização. Faz lembrar aquele catedrático que quer tanto apertar a malha de admissão dos candidatos a catedráticos, para não se esvaziar o estatuto (e as genuflexões devidas, na sua maneira de ver) das catedráticas figuras. Por mim, não quero panteões. Não quero lugar reservado na toponímia da cidade. Não quero reconhecimento. Prefiro o anonimato. Andar nas ruas sem ser reconhecido. Que incómodo dever ser sair à rua e notar que muitos são os rostos que se deitam sobre o nosso, em sinal de público reconhecimento, em invasiva interpelação de quem ganha o dia só porque saudou um famoso. Só quero que o meu pessoal panteão seja a imensidão do mar, o leito das minhas cinzas. (E será que já tenho menos medo da morte, ao admitir a possibilidade de um privativo panteão com a escala do mar?)

7.11.18

Betão armado (short stories #62)


Rufus Wainwright, “Sword of Damocles”, in https://www.youtube.com/watch?v=wmUVy43tqw4
          A metalurgia de um navio mercante: a pele pétrea que se deita aos contratempos que esperam no mar alto. A pele com a cor do ferro, enferrujada que esteja, mas pétrea. Somos o peito armado que se entrega na armadura contra os impropérios do tempo, contra as vociferações engalanadas, servidas no parapeito do dialeto que se esconde em delicodoces, mas ardilosas, fórmulas. Temos de ser o antídoto contra os assaltos que não gritam a sua presença ao mundo. Betão armado, no intraduzível espectro que cobre as possibilidades conhecidas e se precata a desfavor das coisas avulsas que descompõem o horizonte prometido – das circunstâncias que não têm lugar no mapa. Não capitulando às tonitruantes ameaças que semeiam o medo. Não capitulando aos cantos de sereia que escondem o vocabulário escorreitamente soez. Não transigindo com os mares que se encapelam com as facilidades em moda. Pois é o betão armado humana condição (por paradoxal que pareça). Podemos arrumar no corpo a indumentária do betão armado e, todavia, permanecer altares visíveis de uma imensa fragilidade. O betão armado serve para esconder as fragilidades. É um manto de retórica que se oferece aos covisembainhados na alçada da heresia. Se não envergarmos o betão armado, estamos à mercê das implacáveis contradições que são o pasto fácil para a decadência – a irremediável decadência. Estamos à merce dos que terçam armas contra heresias. Não quer dizer que o betão armado seja infalível. Depende do artífice que congeminar o betão armado necessário, da proporção dos ingredientes que entram na sua composição, e da torrente que se esmaga contra o peito (pode ser que o betão armado se estilhace, cedendo à pressão da torrente). Em solilóquio soletrado, num murmúrio discreto, emancipam-se as palavras quiméricas que se investem no betão armado requisitado. Precisamos de proteção contra os sobressaltos, contínuos ou não, que desaguam à porta. Não precisamos se não das palavras quiméricas, traduzidas em betão armado, para tudo o resto ser indiferença.

6.11.18

Mecenato (short stories #61)


Morrissey, “Back on the Chain Gang”, in https://www.youtube.com/watch?v=q_hInzyYN3o
          Com quantas espadas se terça uma paz? Dizia-se: a noite encerra os sortilégios refugiados em sombras insondáveis. São essas sombras que contêm a nitidez das palavras que soam a quimeras. Fala-se de bondade. Fala-se. Também se murmura que se pratica pouco a bondade. Começam as efabulações sobre a ética. Sempre sobre a ética que é exterior a quem assim se entrega a irrisórios exercícios de teorização. Nunca será uma interiorização, esse exercício; aí, a ética cabe sempre impecável, que nem a luva à medida da mão feita a seu tamanho. Volta-se a aduzir a bondade. Com uma interrogação de permeio: importa saber o adjetivo que é o matrimónio da bondade? Fala-se de bondade intrínseca; e de bondade que é um instrumento para outros fins, para pessoais fins (a bondade oportunista). Estão no mesmo patamar? Soerguem-se, outra vez, as batutas da parcial avaliação. A resposta é: depende: se somos nós a praticar a bondade, ou se ela é adestrada pelos outros. Respetivamente: é sempre bondade desinteressada, espontânea, dir-se-ia, bondade em estado puro; é quase sempre bondade indireta, bondade para atingir propósitos que apenas dizem respeito ao bondoso de circunstância. Não há nada como a parcialidade dos juízos feitos. Compõe-se a maravilhosa sonata dos duplos parâmetros. Se um atributo nos é creditado, tem um significado, merece um aplauso; se é imputado aos outros, o significado é diferente, em patente desvalorização em relação ao que se nos atribui. Talvez não interessem os qualificativos; talvez apenas importe o substantivo (bondade), atirando para o reduto da desimportância o adjetivo que seja sua parceria. O que deve ser estimado é o resultado depois da bondade: o recetor dela fica em melhor estado? Em caso afirmativo, teçam-se os louvores à bondade, não cuidando de indagar se é bondade em estado puro ou apenas bondade interessada (exercício em que se mergulha numa perda de tempo que podia ser gasto noutras empreitadas proveitosas, como a bondade). Faz lembrar o mecenato: há patrocínios a manifestações de artes que servem para emprestar uma aura de entidades culturalmente empenhadas a quem as financia. Isso interessa? Importa saber se os mecenas percebem alguma coisa de arte (e da arte que financiam), ou apenas que, através do mecenato, a arte tem lugar?

5.11.18

Instituto nacional de meteorologia (short stories #60)


Kate Bush, “Running Up That Hill”, in https://www.youtube.com/watch?v=wp43OdtAAkM
(Construído com base numa conversa acontecida. O resto é ficção. Mas ficção que encaixa com um protótipo do real: na falta de assunto, desvia-se para o tempo que faz – ou para a falta que o tempo faz.)
- O que dizes a este tempo? Finalmente, a chuva.
- Digo que é o tempo certo para este tempo. O outono estava em atraso.
- Não tenho nada contra a chuva. Só me incomoda que na semana passada andávamos em mangas de camisa e nesta semana o inverno chegou em peso.
- Tens razão. O outono continua em falta. Até à semana anterior, estava colonizado por um verão em final de estação. Agora foi suplantado por um arremedo de inverno que, de acordo com as cartas meteorológicas, chegou do ártico.
- Isto para as gripes vai ser um ver se te avias...
- Há sempre agasalhos à mão de semear.
- Se calhar, as pessoas estavam mal-habituadas ao verão que entrou pela carne do outono dentro.
- Têm sempre a opção de se informarem. Vejam os boletins meteorológicos. Noto, pela maneira como algumas pessoas andavam na rua quando o tempo se virou do avesso, que não passaram os olhos nos boletins meteorológicos. Ainda há dias vi um turista em camisola de manga curta, calções e chinelos. Estavam dez graus!
- Tu acreditas nos mais velhos, que dizem que estes outonos e invernos são uma amostra tímida do que eram no passado?
- Diz-me primeiro, para me situar: os mais velhos têm que idade?
- Setenta para cima.
- Por causa dessa diferença etária, não posso falar por eles. Quando eles evocam essas memórias, eu ainda não era nascido.
- Alinhas na teoria do aquecimento global?
- Não digo que não, nem digo que sim. É um assunto para peritos. Eu não sou. Não tenho dados. Posso confiar na voz dominante, que confirma o aquecimento global. Ou preferir a dúvida metódica, se alinhar com os que desconfiam do politicamente correto e advertem que a teoria do aquecimento global é politicamente motivada.
- Fiquei sem perceber a tua posição.
- Também eu. (Enquanto sussurrava, em comodato com o pensamento, que a conversa desinteressante – e não o era tanto assim, pois a meteorologia era fenómeno que cativava o seu interesse – já tinha expirado o prazo de validade.)

2.11.18

Autocrítica (short stories #59)


Badbadnotgood & Little Dragon, “Tried”, in https://www.youtube.com/watch?v=EyX1RZMPpNA
          Dos cálculos hesitantes, no fio da navalha que é o ermo lugar sem saída: as dúvidas torrenciais. Que depressa se transformam em respostas, acerca das fragilidades que se embainham no crepúsculo de onde se estima vulnerável. Se calhar, os prognósticos terçados em valsas anteriores foram angariados ao desbarato. Foram um embuste. Não só por serem uma imagem distorcida, como por terem investido a fundo na convicção de um estatuto providencial. Não passavam de uma metáfora das ilusões. Dir-se-ia, caso tivessem sido feitos em juramento perante um oráculo, que era um oráculo com defeito de fabrico. Agora, os estilhaços estão pelo chão, à espera de alguém que os expurgue. Não está ninguém pronto para a empreitada. E parece que os estilhaços são a conjugação verbal do seu ser, decomposto no que é apenas uma poeira indisfarçável. Outrora, os tempos foram a preceito. Estava habituado a ser respeitado. Não sabia bem por que era respeitado, mas sentia-se confortável com a deferência. Sabia que todos os encómios eram vãs afirmações de algo que não quadrava consigo. Preferia esconder a condição. Preferia continuar a ver as genuflexões, o tratamento senatorial, as regalias inerentes à condição de excelência. Continuava perplexo com a condição, sem decair na acusação de si mesmo: não se lembrava que exemplares serviços tinha prestado para ser merecedor de comendas. Um dia, foi como se o chão tivesse sido dissolvido sob os seus pés. Tudo se esboroou. Foram os outros que descobriram o farsante. Em sua defesa, invocou nunca ter mentido: o púlpito foi-lhe legado por outros, que o fizeram seu embaixador, uma imagem gravitacional que interessava ao “bem comum”. Nunca forjou documentos. Nunca mentiu sobre os pergaminhos; apenas omitiu – para os seus padrões éticos, não era malsã equivalência com a mentira. Pediram-lhe autocrítica. Devolveu a exigência. Quem o elevou a tamanho estatuto devia arcar com as responsabilidades. Eles deviam ser os intérpretes da autocrítica. Deviam aprender a não serem precipitados e a confiarem nas suas possibilidades, em vez de esperarem que outros, seus testas-de-ferro, desempenhassem o papel. A autocrítica devia pertencer a quem não confia em si mesmo. 

1.11.18

E quem pode dizer que tutela a democracia?


Grizzly Bear, “Losing All the Sense” (live on the Current), in https://www.youtube.com/watch?v=8L-k-WZ9N8I
“Tenhamos consciência bem clara de que escolha de um regime não democrático, por vontade da maioria, não é um exercício de democracia, é a violação dela.” 
António Cândido de Oliveira, in Público, 31.10.18, p. 45.
Para começo de conversa: execro os totalitarismos, sem distinção de grau nem viés do olhar. Todos, sem exceção. Julgo não ser árdua tarefa inventariar os critérios mínimos que impedem os regimes totalitários, ou governantes com pendor autoritário, de serem acolhidos na casa onde se cultivam valores políticos consentâneos com a democracia. E que, fora desses limites, deve ser trancado um cordão sanitário que não transija com os que abjuram aqueles valores, seja nas ideias, seja na mera retórica. 
Da mesma forma, causa-me espécie a arrogância intelectual de quem patrulha a democracia e decreta, do alto da sua sapiência (ou apenas da sua vontade – que vale o que vale: tão importante como qualquer vontade individual), que a vontade da maioria não deve ser respeitada. Não me importa que fruam indignações contra os resultados das eleições presidenciais brasileiras. Estamos em pé de igualdade: também acho Bolsonaro execrável e temo pela saúde do regime vigente, se forem passadas aos atos as palavras radicais que bolçou durante a campanha eleitoral. Também considero inaceitáveis os julgamentos de valor sobre os eleitores que decidiram votar no candidato vencedor. Era o que mais faltava, levarmos com a pesporrência dos que distinguem os “eleitores bons” dos “eleitores maus”. Até há minutos, ainda era vigente a regra (princípio fundamental, aliás) da igualdade do voto. 
Ao contrário do que alguns ultrajados defendem, o resultado das eleições no Brasil é legítimo. É democrático. Repousa nos alicerces do jogo democrático. Não adiantam os argumentos elaborados sobre o húmus sociológico da eleição (a multiplicação de notícias falsas que contaminaram a campanha, um sinal preocupante; ou a escolha do candidato vencedor mais como rejeição dos últimos dezasseis anos de governação do que de genuína adesão ao seu – quase ausente – programa; etc.). Arregimentar mil e uma justificações para um resultado eleitoral que nos desagrada como pretexto para a sua desconsideração é profundamente antidemocrático. Até a ver, o povo continua a ser soberano. Exibir este pretensiosismo intelectual não é abonatório das credenciais democráticas de quem assim se exibe; não é compatível com o vértice axial da tolerância imanente a tais credenciais: é uma contradição de termos, o epítome de incoerência. Acresce outro efeito contraproducente: confrontados com a arrogância intelectual deste jaez, os votantes poder-se-ão sentir ofendidos. Poderá até acontecer que a ofensa seja interiorizada por outras pessoas, que não votaram em Bolsonaro, mas não aceitam a bazófia militante e, em manifestação reativa, se juntem aos intolerantes.
Não acredito que haja tutores da democracia, nem que seja atribuída legitimidade a uma milícia que se constitui observatório permanente da democracia, para aferir da democraticidade dos resultados de uma eleição. Sem cair na vertente subjetiva da análise (poderíamos questionar os pergaminhos democráticos de muitas destas personagens), este desnorte poderá cuidar de exacerbar sentimentos, fazendo acantonar, cada vez mais, um numeroso grupo de pessoas em franjas numa das barricadas do radicalismo. Pois tão radical é o votante num radical, como o que declara ser ilegítimo o resultado dessa eleição, decretando o fim da democracia como sua consequência.