Não devia nada a ninguém. A malha tecida na diligência do tempo era a filigrana constitutiva. Como se fosse um hino, mais do que uma bandeira. Acenava com o sorriso de quem soube dar tempero ao sono pretérito, endereçando os demónios ao esbulho de si mesmos. As ruas estavam apinhadas. Passavam corpos, apenas corpos desfigurados. Ou melhor: corpos sem rosto. Uma certa arquitetura rebelde tutelava a cidade. Não sabia dizer se era melhor que fosse assim. Até as vozes estavam emudecidas, como se os regentes tivessem determinado um dia geral de silêncio. Tementes e obedientes, as pessoas cumpriam com a sua vontade estiolada. Quis sair das ruas movimentadas para apanhar uma réstia de mar. Não é por exiguidade que o mar congraça apenas uma módica parte. Por imenso que seja, o mar é sempre exíguo nestas circunstâncias. As suas águas não são tesouro suficiente para cingir as mágoas acrisoladas na espera do entardecer. O mar convocava o entardecer, o céu ocupado por finas nuvens travando o passo à derradeira luz solar. Aquele dia não era um dia solar. Não diminuía o dia por não ser solar. As pessoas deviam aprender o estatuto do belo nas entrelinhas do estabelecido. Libertar-se-iam do jugo dos lugares-comuns e dos cânones avalizados pelas habituais personalidades. Cresceriam por sua conta e risco, sem seguirem à risca um guião que são convidadas a obedecer apenas porque traz embebidas as credenciais incontestáveis dos engenheiros sociais prediletos dos regentes. Seriam. Seriam livres. Livres para escolherem o castelo onde se refugiam. Para escolherem o tempo dedicado ao exílio necessário, quando sufragam o silêncio como voto de protesto contra a fala gongórica e espetacularmente inane. Não fugiriam da nesga de mar que compreende todo o horizonte belamente plúmbeo. Um entardecer sem a cor desmaiada do ocaso também merece consagração.
4.2.22
O mealheiro (short stories #375)
Arlo Parks, “Softly”, in https://www.youtube.com/watch?v=UOf6N_t69JQ
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