(Que tem uma pele para ser uma maldição?)
O ruído que se desenha nas tempestades não deixa que as esculturas sejam a paráfrase do medo. Vociferam as vozes condoídas. Se soubessem da estatura do amanhã, seriam minotauros possantes no uso da métrica com que se arrevesam os poemas diletantes. As janelas são a epígrafe do belo: elas escondem o belo que se detém no seu avesso e, se forem dadas à bondade, destapam o véu que oculta a paisagem irreverente.
Os violinos falam por nós. O cântico da respiração que despoja o silêncio bate em uníssono. Os dedos amaciam as páginas coladas. As páginas contêm uma certidão em movimento que desembaraça os tabus que pendem sobre as fotografias de outrora. Perguntas: e se fizéssemos um documentário sobre o futuro?
Saímos. O ar pesado levita sobre o nosso suor, enquanto olhamos um pelo outro na atalaia de que somos tutores. Penso: um documentário sobre o futuro; um documentário sobre o futuro. As casas desfilam, devem acreditar no cimento armado e nas cofragens que as mantêm. Nós também temos esteios. São feitos de matéria mais frágil, como atesta a nossa, humana, condição frágil. Por não nos escondermos das fragilidades somos intérpretes de uma fortaleza singular. Mas não é de fragilidades que se ensaiam as figuras de estilo que percorrem a silhueta da tarde que se levanta desde o rio. Se ao menos este lugar não tivesse a originalidade de ser a nossa morada, diríamos que somos forasteiros. Talvez fosse mais fácil o documentário sobre o futuro.
Pergunto: para que queremos capturar nas mãos um módico do futuro? Queremos ser recenseadores do futuro, se o futuro, quando se ajuramenta e passa a ter uma base concreta, perde o seu nome?
Esgotamos o estuário com as lágrimas que deixamos para serem prantos dos outros. Em nós, os braços não são aventais caídos que perfumam os cabelos arrepiados pela nortada plausível. Não gostamos da palavra “plausível”. E não gostamos de desertos, mesmo desencomendando de nós as lágrimas que teriam uma serventia. Preferimos a intendência do desconhecido, as flores campestres que não dedilham aromas, um promontório tombado pelo nevoeiro, um poema com quarenta e duas sílabas, o vinho irrecusável, os corpos que se deitam a si na única dança que não recuso.
Talvez seja isso o documentário sobre o futuro. Talvez. Reúno as cinzas herdadas da lareira com as mãos não gastas. Não está frio. Em nós, nunca está frio. Dizem os almanaques que as cinzas são fertilizantes. Mas nós não temos chão para fertilizar; o chão que é nosso património, todas as léguas que não cabem num mapa, já souberam o que é a fertilização quando se depuseram perante nós, seus imperadores. E nós demos-lhes liberdade. A liberdade para, então, serem a sua própria cartografia.
Não encomendamos o passado, que dele só queremos uma viva aceitação sem sermos sitiados pela nostalgia. Insistes: e se fizéssemos um documentário do futuro? Digo que nós temos nome próprio do futuro que soubemos abraçar em nós. Somos um documentário vivo, peças andantes do mesmo, ritual que se abraça à antítese da rotina, olhos que se alinham pelos outros, o roteiro meticulosamente escrito, a quatro mãos, na combustão dos corpos que não se sossegam.
É isso o documentário sobre o futuro?
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