1.2.22

A margem esquerda

Tindersticks, “Another Night In” (live at the Olympia de Paris), in https://www.youtube.com/watch?v=IZS5rj_Angs

Agradeça-se a solicitude das almas caridosas. Fale-se do desprendimento que as tutela. Olham pelos outros como não olham por si. A custódia do medo é desfeita pelo amparo que emprestam aos que precisam de se desembaraçar do medo.

Intuem-se as reparações que procuram margem. Que sabe o caminho? Os olhos fechados não deixam ler nada em redor. Respira-se nas entrelinhas para não gastar as páginas amarelecidas, as páginas que desvendam o segredo de como chegar à margem esquerda. Pois é na margem esquerda que se titula a caridade sem peias. Só lá aporta quem aceitar os olhos vendados. Para não serem estrénuos agentes que se intrometem na bondade estabelecida.

Podem alguns, ciumentos ou patologicamente desconfiados, irromper com dúvidas sobre o descomprometimento dos bondosos. Podem desconfiar das intenções. Argumentam que os caridosos não praticam a caridade sem um fito último e esse fito só diz respeito aos bondosos. Com o que pretendem desmontar as boas intenções que esconderão outras adversidades não confessadas. A bondade desfaz-se nos seus propósitos. Haverá sempre lugar para os que recusam os rótulos invisíveis às coisas mundanas que os não conseguem discernir.

Na matéria conturbada dos dias sobressaltados, é na margem esquerda que se situam os intérpretes da caridade irrepreensível. É aa margem idílica. As margens afunilam na passagem mais apertada do rio. Os barqueiros desimpedem o caudal. São eles, por preço nenhum, que trazem as suas barcaças ao lugar onde os naufrágios podiam acontecer se não fosse pela sua diligência. Os barqueiros participam da lisura do rio. Fazem-no por desinteresse. 

Na margem direita, os indivíduos soturnos estão de atalaia. Dir-se-ia que querem atravessar o rio e tomar de assalto a fortaleza onde moram os bondosos de toda a espécie. Até hoje nunca conseguiram atravessar o rio. A corrente afasta-os da margem esquerda. As embarcações improvisadas também foram atiradas para a casa da partida. Roem-se de ciúme. Não o admitem em público, mas gostariam de não ser colonizados pelo sobressalto contínuo, pela avareza dos sentidos, como se em cada palavra houvesse um grama de veneno que adultera as veias. 

Da margem esquerda há sempre uma mão estendida. Um dia destes, ainda vão ser devorados por serem ingénuos.

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