21.2.22

Não dirás vingança

Black Country New Road, “Good Will Hunting”, in https://www.youtube.com/watch?v=EX67uWOlbgs

Não sabes – ninguém sabe – se a maré se subleva e atira a nós do avesso. Às vezes, as coisas incompreensíveis são a caução de teorias sem preço. Só que as coisas incompreensíveis acabam sempre por ser reconciliadas com uma explicação legível. Convém não tirar da tela esta mnemónica.

Dizem que há imagens pungentes que colonizam a memória. Como se fossem uma guilhotina que está sempre à espera do algoz para descer sobre os pescoços inocentes de uns quantos que não se importam de ser inocentes. Tu dizes que eles são é ingénuos. E eu fico sem saber qual é a diferença. 

Um dia, vi o mar a tornar-se malvado. Foi o que me ocorreu. Mas depois vim a pensar se tinha sido justo com o mar. Ele está no seu domínio. Somos nós que o invadimos, quase sempre sem perguntar se autoriza a invasão. Não sabemos se o mar não quer ser banhado com os nossos corpos, mas avançamos na mesma contra as suas águas destemperadas. Um velho pescador disse, uma vez, que o mar não se vinga de nós quando subtrai uma vida. Limita-se a ser o mar que é, contido nos seus limites, obrigado a conviver com alguém que o desafiou nos limites que não lhe são consanguíneos. De acordo com o velho pescador, o mar não é vingativo. Convinha ficar perene na tela por que nos seguimos.

Sem te deteres, atiraste com a convicção dos sábios que as pessoas são como o mar: só aparentemente somos tangentes à vingança. Quando sondamos as coisas na sua fundura, quando elas tocam no magma que lhes é alicerce, sentir-se-á o aroma de um vento que refresca o olhar e exclui as conclusões lapidares e contundentes do cardápio da hermenêutica das almas. Dize-lo, com a mesma contundência com que negas a contundência dos farsantes que se disfarçam de vinganças sob pretexto de outra coisa qualquer. Dizes: o mar contém o mesmo sal do nosso suor.

E eu não persigo as versáteis elucubrações dos sábios. Julgo poder dizer, em minha defesa, que a modéstia das capacidades o impede. Também não consinto as páginas inescrupulosas que incendeiam o crepúsculo com os matizes da vingança. A madurez tem esta vantagem: os choques frontais podem ser evitados com uma manobra diligente do olhar, enquanto os dias pesarosos são endossados aos sacerdotes pagãos que se inebriam com o seu privativo mar de contradições. Parece-me que o nosso suor não é da mesma cepa do sal do mar.

A vingança, por contrário que pareça, não tem paga em bom conceito.  

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