2.2.22

Greve de silêncio

Trentemøller, “No More Kissing in the Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=JDLaVXrrzNo

As palavras anestesiam-se contra a moldura da abastança. Ouve-se a cacofonia e ninguém percebe nada. Nem as palavras que aparentemente falam umas com as outras, perturbadas pelo ruído de fundo. O desenho assim masculinizado sobe pela pele das pessoas e é como se elas subitamente ficassem surdas. No entanto, não é de surdez que se fala. Como reação, as pessoas embainham a mudez. Servem-se do silêncio como fala dominante. Não deixa de ser uma fala.

Apanham-se os despojos das palavras que, de tanto entoadas, perderam corpo. Já são apenas um amontoado de letras que aparecem numa forma que se aparenta a um idioma desconhecido. As pessoas refugiam-se no silêncio como arma de arremesso contra as palavras tão abundantes que passam a ser irrisórias. Proclama-se uma greve de silêncio. Por um dia. 

Nesse dia, deseja-se que as vozes se calem contra as palavras prolixas e, contudo, esvaziadas. Pode ser que sejam moderadas no uso da palavra. Que deixem as poses gongóricas que são espelhos de uma vaidade fátua. Ninguém precisa de se amordaçar. É a vontade de resgatar o valor de ouro das palavras que leva a delas abdicar no dia da greve do silêncio. Para que se postulem os fundamentos das palavras embebidas no sentido pleno. 

No dia posterior, as pessoas vão recuperar da mudez. Dirão, talvez, que precisam de desenferrujar a fala. Não podem esquecer o dia pretérito, o protesto contra a vacuidade das palavras que se atropelam nos corredores da presunção. Deverão negociar o regresso da palavra módica, da palavra sopesada, da palavra embebida de significado, da palavra endereçada à metáfora quando a poética tiver o seu dia de plantão, da palavra avivada na silhueta da beleza, da palavra sossegada. Sob pena de novas greves de silêncio serem embainhadas. 

Não se esqueçam as sílabas esquecidas no arreveso das palavras ditas com sofreguidão. Oxalá houvesse uma autoridade sem poderes, mas poderosa para tirar a palavra aos que contra ela atentam na sua verve gongórica ou na rapidez com que assassinam as sílabas do meio. Se a greve do silêncio não for capaz, determine-se a mordaça para os corruptores da palavra. Até que aprendam como é o bálsamo do silêncio que irrompe contra o ruído impossível.

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