15.2.22

Quem quer pertencer a um panteão? (Ou: isto anda um pouco escatológico)

Moderat, “Fast Land”, in https://www.youtube.com/watch?v=qzMP2A66jIQ

(Carta aberta)

Estimados cidadãos: não acredito que se convençam que são imprescindíveis num qualquer panteão. Esse panteão em que estão a pensar passa bem sem a vossa coabitação. Suspeito que esse panteão, ou um outro qualquer, considera-vos dispensáveis nos seus aposentos.

E, contudo, estimados cidadãos, almejais a passadeira vermelha por sobre a qual adejará o vosso féretro devidamente encaixotado pelas melhores madeiras disponíveis, a caminho do panteão determinado em última vontade com selo de notário. Sonhais acordados, porventura, com um tempo em que já não estais com os vivos para saberem como os vivos sobrantes vão congeminar a vossa elegia. Notem no que é importante: sonhais, acordados, com a vossa morte. Não é vida que se leve de ânimo leve.

Pois em verdade vos advirto, estimados cidadãos, que a profusão de intenções a favor de panteões torna-os matéria vulgar, desestimada no lugar onde se mercam estes sentimentos. Se houver panteões para uma multidão já transformada em cadáver, quem quer pertencer a um lugar destes que figura no lado inferior das listas de notoriedade? Não se deixem convencer que um morto tem mais valor do que um vivo, a menos que pretendam, e definitivamente, menosprezar a vida.

(Outra interrogação podia ser laborada: o que interessa a notoriedade a quem a julga ser conseguida só depois de deixar de estar presente entre os vivos?)

Acrescente-se outra perplexidade, estimados cidadãos: até prova em contrário, os vossos sentidos extinguem-se com a paragem derradeira do corpo que consuma a vossa morte. Não acreditem que vos será dado a assistir, desde um patamar extrassensorial, ao decadente espetáculo do vosso funeral. Não procurem o presságio das elegias que possam ser feitas a vosso propósito, pois não há notícia que as elegias se componham enquanto o elogiado permanece entre os vivos. O mesmo se há de aplicar ao panteão a que ambicionam pertencer. Dele se diz ser uma última morada que é a derradeira homenagem à vossa (sempre) efémera transação pelo mundo dos vivos. Se vos assiste algum conforto enquanto, acordados, sonham com a vossa morte, quem são os demais para vos negar a pretensão?

Não vos esqueçais da seguinte pronunciação, estimados concidadãos: até prova em contrário, não há validação de uma vida inaugurada logo que o umbral da morte é atravessado. Não queirais ter, quando a morte se achegar a vós, a visibilidade que não vos foi dada a conhecer enquanto transitaram entre os vivos. Aproveitem para aprender com os erros da vossa vida. Um deles terá sido o tanto tempo deitado fora enquanto vegetaram imersos em ilusões. Não desaproveitem a vida em estéreis ilusões, que não é na morte que a podem resgatar.

O panteão, um panteão qualquer por vós designado, será a tradução, em matéria morta, do viveiro das ilusões. É muito pouco para tanta ambição.

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