Não somos poetas para tecermos obituários. Deixamos que os mortos se levantem na sua partida e fiquem, desimpedidos de nós, os que permanecemos vivos. Talvez não seja fácil o silêncio. Talvez se forjem palavras litúrgicas, como se todos os mortos precisassem de homenagem. Ainda ninguém propôs que a melhor homenagem a quem morre é não o homenagear. É deixá-lo em silêncio, com o amparo do nosso silêncio.
Se entregarmos o corpo à confiança nos elementos limítrofes, porventura ascendemos a um miradouro íngreme ou depomo-nos na finitude da terra que se congraça com o mar. E esperamos que o tempo faça a sua safra, o vento entardecido a beijar os nossos rostos enquanto somos promessas de futuro. Não nos despojamos. Em silêncio, por dentro do labirinto dos nossos pensamentos, constituímos evocações que sejam o fingimento maior: a perpetuação dos que já não figuram entre os vivos, como se as memórias fossem sucedâneas da sua presença. Fingimos um sortilégio, convencidos que os finados precisam de tributo.
Se juntássemos todas as vírgulas que esvoaçam à nossa volta, podíamos traduzi-las nas palavras que são a janela que se abre às memórias. Mas as memórias tornam-se vulneráveis com a erosão do tempo, por mais que elas estejam avivadas na carne como cicatrizes inamovíveis, por mais que o tempo seja generoso e não desbaste as memórias com o seu curso. Dizem que as pessoas que partiram ficam tatuadas na memória, como uma mnemónica que as pereniza. As pessoas que se constituem sujeito dessas memórias não são chamadas à colação. Deixaram de ser matéria sensível. E nós, numa dolorosa peregrinação sem geografia, elevamos o rosto para saber se o sol matinal segreda novas sobre os que já não são inventariados entre os vivos. Procedemos dessa forma porque não estamos preparados para ser matéria morta.
Não percebemos – não queremos perceber – que um dia seremos também matéria-prima para as evocações dos outros. Devia-se abrir a hipótese de, em testamento, ficar vincada a vontade de travar a presença de pessoas no próprio funeral. Olhamos para o poente e sabemos que no seu avesso se encontra o terrível nada onde deixaremos de ser. Olhamos para poente e temos a impressão que é a casa da partida. Pois um dia haverá que ao poente não se segue o dia vindouro.
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