Por estes dias parece que o sol está a arder, mesmo quando é a chuva que toma lugar na nossa língua imobilizada pela letargia. Por estes dias, em que o futuro está do avesso e os dias se contam da frente para trás. E nós, peões num lugar embaciado, somos testemunhas da demência que se enquista nas mãos ardilosas de uns mandantes ensimesmados.
Por estes dias, escrevemos as estrofes depois do pesadelo. Os pesadelos que não rimam com o sono enfeitiçado, mas pesadelos feitos de lava pestífera que se levanta das vozes arqueadas nos rios que transbordam de loucura. Da má loucura, que a boa continua a pertencer aos poetas, esses homens e mulheres desarmados que não se adiam no jogo estratégico feito de vidas cerceadas no seu deslimite. E nós, testemunhas à distância, anestesiados pelos braços impotentes, cuidamos da fala em que fermenta a rebeldia dos fracos que, juntos, congeminam a maior fortaleza que os lugares podem conhecer.
Por estes dias, as vidas perderam valor na bolsa das enfermidades. O palco, povoado por envilecidas personagens sem corrimões para se ampararem, faz gala de colocar os inocentes em posição semelhante. São eles, iconoclastas das paredes túrgidas que são um ermo onde sozinhos habitam, são eles que recusam afeições. São eles, tresloucadamente, que teimam que todos os demais sejam refrão das suas quintessências, como se de nós não sobrasse vontade a não ser que seja uníssona com a deles.
E nós, por estes dias, podemos jogar ao mais belo jogo que pode existir neste alinhamento de circunstâncias: o jogo da cidadania. O jogo em que cada um de nós diz em voz firme que não se deixa hipotecar por tiranos de pé de palco, ensoberbados pela falácia em que nidificam sem darem conta do estado de negação. Somos nós, por estes dias, que temos de tomar conta dos dias para que eles deixem de ser acantonados num lugar pútrido e deles façamos, em fala pejorativa, estes dias por que passamos sem fala válida.
Pois, por estes dias, só as vozes alcatroadas, em clamor que se eleva mais alto do que mil sois profundos, se sobrepõem à intimação dos poderosos que estão sentados sobre a soberba da sua força. Somos nós, vozes não hipotecadas, vozes não contagiadas pela diligência dos calculistas – vozes que se fazem fortes de tão frágeis se aparentarem –, que nos podemos oferecer mártires. Em verbo mártir, em substantivo mártir, em austero adjetivo mártir. Até que as vozes juntas dissolvam as fronteiras e façam das distâncias uma ninharia e povoem rotineiramente os sonhos mais sombrios dos facínoras que nem a si se respeitam. Ao menos uma vez, a vingança dos fracos seria a prisão dos fortes inundados pela sua cegueira.
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