A nau, errante, não sabe dos caminhos que o mar ensina. Um dia, alguém perguntou a um marinheiro se havia corredores marítimos como há corredores aéreos que contêm a navegação dos aviões. O marinheiro desconversou. Começou a falar de sonhos com sereias, nunca confirmadas pela lucidez dos mareantes. E depois narrou uma estória.
Sem saber, a nau fugiu da tempestade ao navegar para Sul. O comandante, ainda meio ébrio, anunciou que era preciso o conforto dos trópicos, que estava farto da invernia. Os marinheiros (que se livraram dos efeitos da embriaguez antes do comandante) ficaram perplexos. Já não se lembravam dos enchouriçados anoraques que vestiam sempre que o Inverno acompanhava a nau. Talvez o comandante fosse inimputável, de tantas noites seguidas a beber ao ponto de o stock de bebidas estar perigosamente a chegar à reserva.
Um marinheiro mais intrépido, descontente com a errância da nau e com o desinteresse do comandante, preparou uma intentona. Os camaradas não podiam continuar à mercê de um comandante baço e desinteressado. Por este andar, não seria só a bebida a faltar; a comida também. Se a nau continuasse a vaguear ao sabor da estultícia do comandante demissionário, acabariam todos a comer-se uns aos outros?
Terá sido o cenário de antropofagia que assuntou a tripulação. Uma comissão foi empossada para cuidar da transição de poder. Teriam de informar o comandante que estava deposto de funções, por decisão unânime da tripulação. O comandante levantou a cabeça a custo, franziu o sobrolho, e tartamudeou, a custo:
- Quero lá saber. Tomem conta da embarcação. Quero ver como vão tirar o navio do meio do mar.
A tripulação pegou nos manuais do navio. Juntaram forças e perícias para conduzirem a embarcação até a terra firme. Não importava o lugar. Apenas queriam saber como era ver a terra firme, senti-la de novo (e todas as lateralidades que a ida a terra firme cauciona). Como um vulto fracassado, o comandante deposto subia ao convés a espaços. Olhava com esquivança para a tripulação em bulício, perdida na sua ainda desorientação. E depois virava costas, deixando atrás de si um rasto de insano gargalhar:
- Vamos todos naufragar. Vamos todos naufragar. Não tenham ilusões. Nenhum de vocês voltará a saber o que é terra firme.
Um dos marinheiros perguntou se o comandante não se importava de morrer. Murmurou, a custo, que não. Logo depois, revigorado por um lampejo de fúria, virou-se para trás e disparou:
- Nada tem importância. Nada. A começar por mim. E vocês, também não.
Alguns marinheiros ensaiaram a sublevação imediata. Se não tivessem sido parados, teriam tirado ali mesmo a vida ao comandante. Um dos que assumiu funções no leme do navio gritou com voz de comando:
- Não se dispersem. Todos são importantes para levarmos o navio para um porto firme. Todos. Deixem o ex-comandante mergulhado na sua desimportância. Deviam saber que do nada só podemos esperar nada.
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