14.2.23

Residência artística

Death Cab for Cutie, “I Will Possess Your Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=pq-yP7mb8UE

Diziam que era um exílio voluntário, a garantia de produção artística que se visse. A residência artística era como uma clausura monástica, sem a cicatriz da fortaleza inexpugnável que não permitia a saída dos seus limites. Congeminava-se como uma reclusão, mas não era para ser levada ao exagero: ao artista eram permitidas saídas aos espaços limítrofes, pois a paisagem bucólica podia ajudar na criação. 

E se se pensasse que a restrição da liberdade não quadrava com a liberdade criativa, desenganem-se os espíritos assim incomodados. Os candidatos à residência artística eram em número superior às vagas. Como é habitual nestes casos, jogavam-se muitas influências. Os artistas candidatos moviam-se nos corredores de influência que julgavam os certos. Instruíam-se de padrinhos já afamados, de quem esperavam que a palavra certa à pessoa certa no momento certo fizesse inclinar a balança a seu favor. 

Os critérios de seleção estavam metodicamente redigidos nas regras que instruíam as candidaturas. Todos sabiam que o fator de desempate (melhor dizendo: o critério de seleção) era a intercessão mais influente, exigindo um padrinho carismático, e que o júri devesse uns favores a esse padrinho. Pelo meio, não fizessem perguntas sobre o paradeiro da ética republicana, que os artistas lidam mal com os ecossistemas da política e do direito (muito embora muitos deles passeiem lições de moral que versam sobre esses domínios).

Ninguém se importava com estes detalhes formais – muitos diziam, desprezando-os, “detalhes meramente formais”. Até os artistas preteridos concediam que a falta de transparência não era motivo para levar o caso à barra dos tribunais. “São as regras do jogo”, comentavam, com ar resignado, enquanto dirigiam as esperanças para o concurso do próximo ano e começavam a pensar se deviam mudar de padrinho. Ninguém se importava: não é o formalismo que derrota o mais importante, a força substantiva da obra criada durante a residência artística. O resultado, a obra criada, cala a falta de transparência do processo de seleção e põe as formalidades no lugar secundário que é o seu. E que ninguém os acusasse de atropelarem a ética republicana, que a criação artística não deve ser medida por um filtro que é alheio à arte.

Durante a residência artística, os artistas ficavam embebidos num transe criativo que era a garantia prévia de valorosa criação artística. Assim fora no passado, não se imaginava que pudesse ser diferente nos anos vindouros. Todos acreditavam que o convento reconvertido, onde o artista escolhido entrava em residência artística, o inspirava. Sem darem conta, deram o flanco a uma fonte divina de inspiração, o que atentava contra o ateísmo incorrigível de quase todos os artistas.

O que interessa a coerência se a arte não está amarrada a esse ferrete? Os artistas transgridem convenções, a menos que sejam eles a ditar um novo cânone para a ata que os recolhe. Mas isso também não é incoerência, apenas porque, se preciso for, os artistas descem ao palco onde se passam as coisas mundanas e certificam, através da sua não sindicável palavra, não se tratar de incoerência. Palavra sábia de quem ostenta no currículo uma residência artística tão por todos consagrada. 

Uma questão de estatuto – e não interessa que o estatuto seja uma entrose à igualdade tão deificada pelos artistas (e não só).

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