1
O vento corre pela Praça da Fortuna, saltando por cima das ameias que encimam a cidade. É um vento irrefreável, desarruma as mesas dos cafés, adultera as esplanadas e atira os turistas e os nativos para dentro dos cafés, ou de regresso a casa e aos hotéis. Não estava previsto, este vento. O silêncio toma conta de tudo, como se fosse preciso para ouvir o ciciar furibundo do vento que veio sem aviso. As pessoas limitam-se a contemplar a coreografia levantada pelo vento. Suspendem o tempo enquanto o vento não desarma.
2
Atrás do crepúsculo, um jogo de sombras. Os chapéus mobilizados contra os panteões que se prometem – como se tudo não passasse de um jogo em que só conta a morada que alberga a morte. Uma síndrome de viuvez. Os almocreves das palavras gastas monopolizam o discurso. Dizem sempre as mesmas palavras porque uma numerosa audiência quer sempre ouvir essas palavras. O medo da diferença soergue-se, cimentando a sedução pelos lugares-comuns. São as pessoas que estão gastas. Sem remédio.
3
Na televisão, a violência não dá tréguas. Nos filmes, nas notícias que atualizam o desestado do mundo, nas discussões em que lava incandescente é bolçada para o outro, nos detalhes que invadem, soezmente, as consciências. É preciso desassossegar as consciências – era um dado adquirido, ou não andassem os filósofos há décadas de livros de meticuloso pensamento a adverti-lo. Não é do desassossego da violência gratuita que as almas precisam. Não é um estado de sítio interior, que é um contínuo sobressalto, como se fosse proibido acalmar o sangue, de outra forma em constante ebulição. A televisão assim encenada é um miradouro que desmascara a miséria humana. Como se a espécie se resumisse a uma sequência de misérias.
4
O ecuménico sopesar das diferenças está em baixa na bolsa dos valores. Tudo é motivo para ser exacerbado. Não se expiam culpas, que são endereçadas para lugar incerto. Todos os cozinhados são má gastronomia. Todo o sangue está contaminado por literatura banal e poucos se interessam em superar as costuras da fala ramerraneira e cansativa. Que paisagem morta, a caminho de ser decepada por cavaleiros do apocalipse que não têm oposição.
5
Ao menos há um módico de esperança a espreitar entre os poros da pele que estão de atalaia quando o mundo grita contra si mesmo. Nem tudo é o mal colocado em hipótese, à porta de um abismo pronto a ser o vazio sob os nossos pés. Às vezes, temos de nos deter no limiar do abismo, sentir como os arrepios agitam o magma efervescente, e desse fluir extrair um mandamento que torna as coisas no seu avesso. Até que as trevas dão lugar a um esplendoroso voo sobre o tempo em forma de miradouro e as arrelias são pequenas vírgulas que não incomodam o livro inteiro. Até que não seja atrevimento aprisionar os contratempos numa biblioteca que serve para memória futura.
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