Sabiam que os rumores podiam ser como mata-borrões. Não reprimiam a sua peregrinação metódica. Que houvesse vítimas inocentes apanhadas pelo caminho, era do seu desinteresse. O que importava era jogarem aos deuses. Faziam de conta que eram deuses. Para tirarem ao acaso as vidas por eles sobressaltadas.
Nunca passou pela cabeça usarem dotes semelhantes para agigantarem vidas. Sabiam que a maioria se angustia com as frustrações, as juras não cumpridas, os planos que a desfortuna cuidava de importunar, os erros não resgatados por arrependimentos meticulosos (ou apenas farsantes) – as vidas cadelas, sem sumo para resgatar. Só sabiam fazer de conta que eram deuses se fossem agiotas dessas vidas. Se as empurrassem pelo desfiladeiro, o gesto derradeiro para desfalecerem numa apneia irrisória.
O pior, é que as pessoas não sabiam da existência destes candidatos a deuses. Uns, por saberem, no púlpito da sua fé, que só há um deus e não é humano. Outros, por ateísmo ou agnóstica condição, por não conhecerem epifanias, meros devaneios esotéricos. Uns e outros ficavam à mercê dos (assim autoconsiderados) deuses. Se a vida fosse madrasta e conspirasse contra eles, procuravam encontrar culpados nas suas imediações. (A culpa, ensina o povo, é a eterna prometida do celibato. Os deuses a concurso perfilavam-se como culpados por excelência.) Os primeiros descobriam que não são monoteístas, imputando culpas a deuses desleais que desarranjaram a vida. Os outros descobriam que estavam errados: afinal há deuses, mas têm uma carantonha, e semeiam o mal entre as vidas arrastadas para o seu perímetro.
Uma mulher sexagenária descobriu mil motivos para se lamentar do passado próximo. O futuro, esse, não era promissor. Ela sabia da conspiração dos putativos deuses que passam o tempo a estilhaçar vidas sem culpa (aparente). Cabisbaixa, enquanto olhava para o caudal do rio sem reparar como fluía, voraz, para a foz, ensaiou uma prece que não vinha nos missais. Impetrou que todos os garrotes que sobre ela pendiam fossem aliviados. Que as demoras não colonizassem o tempo como se ele não fosse efémero. Pediu, de olhos fechados e com os dedos entrelaçados (pondo toda a força nesse entrelaçar para esconjurar os deuses a destempo), para um deus acima zelar por ela.
Em toda a sua acrimónia, a mulher amaldiçoou os deuses que concorriam no mercado de divindades. A quem passasse, brandia, com ar tresloucado, que os deuses em compita são disfarces de demónios. Só não se soube se também incluía o deus oficial.
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