Não precisavas de tanta excentricidade. Os outros, chamam-lhe loucura. Não te prendas aos requintes da semântica. As palavras podem conter diferentes graus de um estado, mas o que interessa é o estado de alma a que elas remetem.
Às vezes pareces convencido que desceste aos infernos e depois conseguiste a redenção. Não sabes ao certo o porquê da visita aos infernos, nem sabes caracterizar a sua geografia. Também não sabes descrever o processo interno, e as ajudas exteriores, se as houve, que te extraíram do rapto de que os demónios foram autores. Esse período soa a uma nuvem densa, baça, que não deixa ver nada até dentro das fronteiras viáveis. É como se tivesses sido atirado para uma hibernação, e tu sabes que nunca requereste uma hibernação. Foi por essa altura que duvidaste da propensão para o hedonismo. Nunca mais foste boémio – e também não sabes porquê.
Outras vezes, parece-te que a História é narrada na primeira pessoa. E tu sabes que não foste testemunha da História, o que fermenta o paradoxo. Talvez seja um sonho contínuo, disse uma amiga. Outra hipótese é a de viveres um palimpsesto, ou vários palimpsestos, como se em ti medrassem incontáveis bonecas que se desmontam de bonecas por sua vez interiores, e assim sucessivamente. E a cada palimpsesto uma parte de ti fosse perdida no processo.
Um sonho contínuo, era a hipótese. Ficaste a cismar na hipótese. Um sonho não se tem quando estamos acordados. A menos que haja sonhos impercetíveis, fingidos de pesadelos que se insinuam nas pregas da pele e não se ostentam em palco. Como se fossem irmãos siameses e apenas um deles conseguisse espreitar pela escotilha, o outro condenado a viver num escafandro, conhecendo apenas as figuras míticas que habitam os fundos dos mares. A gramática desses pesadelos sem visibilidade é um mistério improfundável.
Talvez seja esta linhagem que atravessa a tua existência, um absurdo costurado às mais belas páginas que seriam hinos literários se tivessem tradução em palavras escritas, paisagens que avivam os roteiros de turistas solitários, uma mnemónica para o passado sem serventia. E tu, teimosamente, convencido que podes tirar o bife da boca do tigre sem que o tigre responda à tua ousadia.
Não experimentes levar o sonho contínuo tão longe.
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