21.2.23

Flúmen

Expresso Transatlântico, “Azul Celeste”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZIonUZtqZeE

“É tão difícil guardar um rio

quando ele corre 

dentro de nós.” 

Jorge de Sousa Braga, O guarda-rios.

As paredes faziam as vezes de estradas. Eram o caudal por onde as lágrimas eram sofreadas. Não cabia em mim. Não cabia em mim porque havia um rio por dentro que não obedecia à vontade. Agigantava-se e não dava conta, a não ser quando já tinha transbordado. As margens não demarcavam o rio. As suas águas andavam por todo o lado, falavam um idioma baço que não tinha tradução. Só o rio é que tinha vontade.

Não consegui temperar a razia de um rio que acendia uma rebeldia indomável. Dizem: a rebeldia é sempre indomável. Dizê-lo é da ordem das proclamações que se tornam adultas por dentro de uma teoria. Senti-lo, como vítima dos seus tentáculos, é coabitar com a dúctil destemperança de quem sente na carne o lugar da vítima. 

Esse rio calado não anunciava o caudal excessivo que, mais cedo do que tarde, seria um folgado lençol a monopolizar a paisagem. Era como se tudo ficasse por conta do rio e o resto deixasse de contar. Não conseguia habilitar as veias para o antídoto de um rio selvagem. Não fora capaz de subir a um promontório para conter o rio à distância, nem fui diligente para levantar os diques que fossem precisos para educar o rio. Ele continuava a habitar-me por dentro, a tomar as rédeas logo a partir do magma, a sufocar os vulcões que nem conseguiam ser partícipes do seu irredentismo.

As pálpebras sonolentas vertiam-se sobre os olhos. Uma vez domados os olhos, o sono tomou conta do tempo. Com ele emergiram os sonhos avulsos que não pedem hermenêutica. Eram sonhos que submergiam o corpo nas águas lamacentas do rio em transgressão. Era possível encontrar troncos de árvores arrancadas às margens ocupadas pelo caudal vertiginoso, cadáveres de reses que não se salvaram do cerco, rostos conhecidos e outros subordinados a gente anónima, nomes em mutação, destroços de barcaças estacionadas em cais improvisados, mapas arrancados à terra, pedaços inteiros de mobiliário, sugerindo que casas ribeirinhas tinham sido levadas pela corrente irrefreável, um marco geodésico da consciência resistente. O rio inaugural destroçava o silêncio campestre e sobrepunha-se à desordem da cidade.

O rio em sobressalto não tinha guarda-rios. Era a sua própria lei, um paradeiro escasso por dentro de uma geografia colossal. Um rio que queria que o futuro pagasse os juros de arrependimentos mal guardados, sem contemplações, sem admissão a recurso. Todo o eu, um rio indomável. E eu, testemunha primeira de um suplício em desordem com o rio transgressor.

Sem comentários: