28.2.23

Outra versão, mas sem espinhas

Ólafur Arnalds ft. JFDR, “Back to the Sky” (Sunrise Session), in https://www.youtube.com/watch?v=5GIBRelGHpc

Nem que fossem as estrelas os mandamentos imperativos, nem assim aceitava sair de si para uma qualquer transfiguração. Nunca a expressão “muito senhor de si” fez tanto sentido. Mas este ensimesmar tornara-se um terrível objeto de contrafação interna. De tanto insistir na matéria axial, ele deixara de fazer sentido até para ele próprio. Demorou a admiti-lo, mas foi essa a espuma que veio no regaço de uma maré. Soando como um terramoto.

Tinha de dar uma diferente versão de si. A começar, esta oferenda seria destinada a si mesmo. Se a versão que julgara ser o eu autêntico não era uma representação fidedigna, teria de encontrar outra. A incumbência era irrecusável por ele ser o mais favorecido. Precisava de se despir do sangue que era o agente agressor. Precisava de virar a carne do avesso para descobrir onde estava contaminada. Não precisava de um instrumento que ampliasse a visão, pois conseguiria descobrir onde estava a matéria pútrida à vista desarmada, os abcessos que o tornaram alguém estranho por dentro de si mesmo.

A mesma certeza não tinha quanto à outra versão de si que haveria de amarar no palco onde nos terçamos. Deixar de ser o eu que se habituara a ser já era dilacerante. Sempre fora à prova de dúvidas e por dentro de si as certezas sobre a sua pessoa eram como impermeável a arsenais e a torturas. Que versão se emanciparia desta catarse não entrava para o rosário das certezas contundentes que eram tão afluentes.

Para não andar longe da lógica, não se pode estender um braço filantropo quando alguém se apalavra a uma transfiguração. Já percebera que as mudanças não transigiam com o minimalismo, que essas seriam de circunstância e não povoariam a desejada mudança. Talvez a outra versão, desta vez sem espinhas, fosse a resposta que procurava. Com as propriedades telúricas que a simples definição de “outro” como intenção representava. Não interessava saber que outro eu sairia do exercício catártico. Folgava em saber que a empreitada estaria completa quando o eu desandado estivesse despojado de vez. Diria, com alguma desilusão a caldear o olhar nostálgico, ser uma lógica de mínimos, com alguma desambição pelo meio. Faz-se o que se pode, com o que se tem entre mãos, na proverbial confissão das fragilidades que limitam o perímetro das mãos. Tinha-o por intendência à conta da humildade que não é a moeda fraca em que nos compomos.

Talvez deixar de ser quem era seria a outra versão exigida. O resto seria jogado no tabuleiro onde as contingências rimam com o porvir. Devia esperar que a outra versão albergasse espinhas, outras espinhas, diferentes das que se habituara. Não há versões outras, nenhumas, à prova de espinhas.

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