20.2.23

Implausibilidade

Perfume Genius, “Describe”, in https://www.youtube.com/watch?v=vAoWMJTClqo

As planícies ajudam a descansar. As subidas são inclinadas e o coração berra de fadiga. As descidas inflacionam a adrenalina e o perigo sente-se a estalar na boca. Se calhar devia apenas andar de barco, atravessando o rio de um lado para o outro, serenamente à espera que o tempo seja da outra margem. Na pior das hipóteses, sente-se o marear quando o rio se deixa contaminar pelas ondas vomitadas pelo vento sem regras. Os contratempos não podem ser excluídos.

Se não acordasse a meio da noite não saberia como se comporta a noite temperada pela solidão. É errado dizer que a noite é o santuário da solidão, que o pensamento não se enquista sozinho. Voam sozinhos, os arrependimentos. A lareira que já apenas crepita no seu estertor desacompanha as mentiras que querem espreitar pela escotilha. O silêncio consome-as, convidando para a sua sepultura.

E depois vem o amanhecer, a noite a desmaiar vagarosamente à medida que a claridade espreita pelo periscópio. E a manhã agiganta-se, diluindo o crepúsculo tardio numa claridade que se compõe no aroma da pureza. Às vezes, a claridade devolve um retalho do tempo em que parece que o tempo cedeu ao deslumbramento da sua suspensão. A noite continua no dia claro que persegue o tempo vindouro. Não se arruma num ocaso sem certidão. Essa é uma tirania que foi banida do dicionário que rege a humanidade.

Em vez de certezas, as ruas convidam uma nova toponímia. Não sentem remorsos por terem preparado as armadilhas que consomem o longo braço do estabelecido. Rompem as fronteiras sem haver registo da sua plausibilidade. Os vitrais que decantam a luz exterior deixam passar as legendas frugais que escolhem cada palavra, para as palavras não serem ao acaso, para não se deitarem na cama onde se aferroa a derradeira noite. 

Dizem: ninguém quer as mentiras, e essa é a maior mentira que se pode inventariar. Nem uma armadura medieval seria capaz de dar cobertura ao princípio geral da mitomania em que vivemos. Porque tudo se torna plausível, em repetitivas reinterpretações do passado que impedem a consagração de um presente definido. A verdade está pela hora da morte, e esta não chega a ser uma mentira averbada. 

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