27.2.23

O que aconteceu no futuro?

Um olhar de fora perguntou como tinha sido o futuro. As pessoas, umas entretidas a afiar canivetes, outras a sopesar sonhos na manta intemporal em que se teciam, fingiram não ouvir a pergunta.

Insistiu: alguém sabe o que aconteceu no futuro? Aos poucos, umas palavras timoratas foram sendo atiradas para a pantalha onde tudo se passava. Uns resgataram as inadiáveis desculpas que são a alfândega por onde o futuro não passa. Dir-se-ia, são os que habitualmente adiam o futuro. Outros puseram um sorriso fotogénico para quadrar com os lampejos de claridade que se emprestavam ao futuro acontecido. O céu sob o qual nos albergamos é uma perenidade de esperança. Alguns ficaram a meio da ponte, caldeando contratempos com proezas, próprias ou que, sendo alheias, foram apropriadas como património comum. Outros, ainda, pareciam dormir por dentro da sua hibernação enquanto o tempo percorria as suas peles anestesiadas. Ou, pelo menos, fingiam.

As respostas eram pouco convencedoras. Continuava sem saber o que aconteceu no futuro e ainda ninguém o tinha convencido que não era importante chegar ao futuro antes dos demais. Era um ativista do tempo pressentido. Desde que ficou a saber o que era um oráculo, nunca mais desistiu de adivinhar o tempo que ainda estava a léguas de existir. Era um exercício lúdico – e sabia-o bem. Que não lhe dissessem, com a pose exacerbada de quem profere lições de moral, que nada se sabe sobre o futuro e que a sua contingência trava a utilidade dos oráculos. Não queria saber desses pré-avisos de sensatez. Deixava que a lucidez lançasse âncora noutros cais.

Sabendo da improficuidade da sua demanda, recusava-se a capitular. Continuava a perguntar aos outros se sabiam do paradeiro do futuro. Desejava tanto saber o futuro antes de ele o ser! Dava o seu contributo. Recorria ao seu particular oráculo e penhorava o futuro com palpites. Não tinha medo de errar – assim entronizava a razão dos moralistas que, em pose tão superior, davam lições sobre a contingência do futuro e de como ele é imprevisível, à prova de presságios. 

Uma e outra vez, insistentemente, continuava a perguntar o que aconteceu no futuro. Aos outros que tivessem uns gramas de resposta, e a ele próprio, que passou a exibir no cartão de vista, sob o nome e morada, a inscrição “futurólogo”. De cada vez que o futuro cuidava de confirmar uma previsão arrematada pelo oráculo, exultava. Dirigia elogios interiores, que partilhava com os seus botões, de si tecendo loas pela presciência acima da média.

Um dia, um idoso que esbarrou no seu oráculo engalanado tomou-se de uma fúria porque ele adivinhara, semanas antes, um acontecimento que o futuro trataria de confirmar e que não agradara ao idoso. O velho, com mau cenho, advertiu-o. Que mania de tomar as rédeas de um tempo que ainda vai a tempo de acontecer. E, em jeito de despedida, censurou-o por a velhice não se compadecer com o futuro; quando o futuro vier a acontecer, talvez os idosos já não pertençam aos vivos.


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