Não preguem virtudes, nem valores que depois não passam das páginas onde são formulados. Não apareçam com prenúncios de divindades, como se constituíssem a redenção das pessoas frágeis. Não meçam juras se se sabe, à partida, que são uma distração. Aconselhem-se com os maus exemplos. Um exemplo, para ser exemplo à imagem da fragilidade humana, tem de ser mau. Não são as intenções que contam, se à sua conta se contam tantos desencantos, tantas irrealizações. Não são as palavras sortilégio que se arquivam na caixa forte que vai sendo feita. Em sua vez, a errância sem remédio, os impuros ares habitados, as paredes enferrujadas que são o mapa das mãos imundas, por mais que sejam submetidas a lavagem assídua. São os maus exemplos que correspondem ao marco geodésico em que somos peões. No efémero pulsar de um sangue desabitado, como se fôssemos os ermos lugares sem direito a visitação. Fôssemos antes as desvirtudes que se agigantam na clepsidra contínua, um descontínuo apalavrar das medidas vagas pela grandeza apenas onírica. Em cada centímetro ocupado, a consciência de um território minado. O segredo é conseguir meticulosamente evitar as minas que a estultícia foi despojando para memória futura. Sem consagrar a angústia como a diletante forma de ser: o espaço ocupado pelos corsários não se oferece a santuários, é o pesar da desfortuna que açambarca as vidas. Em vez de idílicos retratos do futuro que não chega a ser, os corsários deixam cair o pano baço que vincula o olhar comprometido. Podemos ser corsários de doca seca, mas não deixamos de ser corsários. Na posse de uma rebeldia à prova de regras, combinando a indumentária puída com a imperfeição que se pode esperar dos tempos vindouros. Assim os maus exemplos avançam, diligentes, contra as fracassadas esperanças, contra os lautos sacerdotes de céus desimpedidos.
24.2.23
Corsário (short stories #418)
Haircut 100, “Love Plus One”, in https://www.youtube.com/watch?v=5_msHpEa3_Y
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