Algures, depois de uma lua nova que ninguém notou, as pistolas estavam armadas, de atalaia, contra possíveis assaltantes. Mas podia ser apenas consequência do convencimento de uma doentia conspiração (ou do doentio convencimento de uma conspiração – ainda não tinha sido descoberto). Sob o aparato da liberdade, tantas vezes evocada que se exauriu dolosamente, ocultava-se uma escravidão silenciosa.
Havia ruas condimentadas de drogados. Uns, à procura de próxima dose, movendo-se como ratos desesperados enquanto não saldavam a deslocação. Outros, errando pelas ruas, mendigando qualquer coisa sem obterem vencimento de causa, o tempo a avançar e a abrir a carne viva para o vinagre que não demorava. Outros, ainda, abandonando o lugar ainda mais apressadamente do que à chegada, a procurarem o primeiro exílio onde pudessem satisfazer o vício, os prometidos efeitos lisérgicos à espera de serem o estado comatoso sem eles perceberem.
Desta escravidão poucos falavam, a não ser para expor uma decadência que falava de viva voz. Abjurando os dependentes das drogas mercadas e os que as transacionam, traduzindo por lucros a satisfação de todos os vícios em fila de espera. Não se falava disto como escravidão. Era a vergonha consequente à decadência que parecia cal viva atirada para cima de uma ferida aberta, sem que as dores fossem suportados pelas vítimas da escravidão; elas eram tuteladas pelas almas sensíveis que se consideram trespassadas por serem testemunhas de tanta decadência. Não eram dores em nome de outrem; eram dores próprias ditadas pela decadência alheia. Era como se a decadência fosse exportada dos autênticos escravos para os que vivem numa liberdade quase sem freios.
Porventura, a distração de deus consuma a decadência que atira almas humanas para uma subcondição, para serem intérpretes da miséria que tantas vezes é um labirinto sem saída. O mesmo deus, possivelmente atarefado com uma qualquer travessia no deserto, cuidando de abrir dunas com as diligentes mãos para irrigar um sequeiro e trazer a fertilidade a lugares que eram viveiros de infecundidade. Esse deus que anda distraído a caucionar as guerras congeminadas por homens estultos, dizem que à sua revelia, sem que ele se oponha a essa revelia com competência.
Ou deus, em pessoa, é um drogado que podemos encontrar no grande mercado das drogas a céu aberto. E ele, esvaziado pelos efeitos tardios da dose anterior, incapaz de prover o seu sustento a não ser que seja fautor de um punhado de furtos e se dedique à recetação, esteja em negação. Abdicando do seu nome e do seu estatuto. Ou então, dando a descobrir a sua autêntica morada.
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