31.7.25

Medalhas olímpicas

The Hard Quartet, “Killed By Death” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=d8hIGqj3k-8

Quero ser a pátria das proezas, denominador comum máximo das bocas que inventariam os modos de acarear o tempo. Um sufrágio portentoso, arrancado ao luar singular que emoldura a noite desconfiada. 

Às vezes sou destemido, a loucura tomando conta de mim, e torna-se fácil pegar as decisões de caras, mesmo que sejam as decisões mais caras. O rio caudaloso é apenas um adereço bucólico que combina com a mansuetude do dia. As vozes são sibilantes, gentis, como se os espanhóis tivessem sido extintos (ou tivessem todos ido ao otorrino).

O que faço com as proezas? Ficam a adejar sobre o presente como prova de vida do passado, como autênticas emboscadas da nostalgia? Demoramos a aprender que o código genético do mundo é efémero; quando aprendermos, já o efémero ficou para trás, enquistado num passado imóvel. A aposta que se emancipa é na perenidade, sem se perceber como ficamos reféns de uma medida estática que nos condena a sermos uma fração apenas. O que ninguém aprende é a traição constante do tempo; ou melhor: como nos sentimos traídos pelo tempo quando o erro sistemático é nosso, que fingimos não entender as sucessivas camadas do tempo e de como elas se colocam num fio contínuo.

Se em vez de colocarmos o olhar oblíquo sobre o dia observado o olhássemos de frente, não seríamos a covardia de quem teme errar. O erro contém o seu próprio antídoto. Não é o machado que cai, implacável, sobre os dorsos curvados dos profetas do erro. Empresta os instrumentos que são necessários para aplacar o erro que virá com o tempo vindouro.

Não ando à procura de conclusivas descobertas que findem pendências por dirimir. Já escolhi a pátria que prefiro e essa é a pátria que arregimenta as interrogações sistemáticas. A melhor das medalhas, das olímpicas e das outras, que pode cair no regaço em espera.

30.7.25

Os pecados dos outros são piores do que os meus (porque os meus escondo-os bem escondidinhos)

Deftones, “Back to School”, in https://www.youtube.com/watch?v=1gxZIL4zpIQ

Deu brado um caso de adultério descoberto durante um concerto de uma banda pop muito conhecida. Num apanhado do ecrã que transmitia o concerto em direto, para os espetadores poderem ver o que se passa – às vezes, está-se tão longe do palco que só se consegue acompanhar o concerto através das imagens reproduzidas nos ecrãs gigantes –, num time frame, o realizador apanhou um casal em pose de enamoramento. 

Descobriu-se, pouco tempo depois, que o homem era um importante gestor de uma importante empresa tecnológica e a mulher dirigia os recursos humanos da mesma empresa. Nada de anormal. A malta, sobretudo a que gosta do género “comédia romântica”, embeiça-se facilmente pela pose de um par de apaixonados. O verniz estalou quando as identidades do casal foram reveladas. Descobriu-se que, afinal, não eram um casal com a devida bênção das convenções sociais. Ou melhor: cada um era casal com outra pessoa que não tinha comprado bilhete para o concerto. Estalou o verniz porque estavam a cometer adultério em direto. 

As hienas do costume, zelosamente apascentando os bons costumes (e o adultério é um mau costume), logo saltaram para a praça pública destilando superioridade moral e criticando o casal, que afinal não o era (pelo menos aos olhos destas hienas), só faltando o apedrejamento público para exprobrar o pecado que passou à frente dos olhos de uma multidão e em direto – e depois foi reproduzido numa multiplicação sem fim. Munidos de uma lança ungida pela superioridade moral de quem se autoatribui o direito de julgar os outros pelos seus comportamentos, evacuaram o azedume segregado pelas suas mal-amanhadas, desinteressantes vidas (isto é produto da minha especulação) para zurzirem no homem e na mulher que foram apanhados em “flagrante delito”. Que vergonha: o adultério à vista desarmada.

(Termos em que é legítima a pergunta: se o adultério não tiver testemunhas, não existe? As pessoas que admoestam o adultério alheio atuam como a consciência dos adúlteros?)

Para piorar o infausto episódio (infausto devido às proporções que tomou, fenómeno ao qual os “adúlteros” foram alheios), algumas opiniões que criticaram os críticos levaram por tabela: deitando as mãos ao céu, eventualmente em demanda de caução divina (que tomam por implicitamente consensualizada, atendendo ao muito oportuno silêncio divino), deitaram-se ferozmente aos seus críticos, devolvendo a crítica em dobro e com particular veemência. Só faltou insinuar que quem condescendia com o adultério em direto exercitava as suas dores de consciência, possivelmente por já terem cometido, com regularidade ou episodicamente, adultério. Para gáudio dos julgadores de plantão, exportaram o julgamento do casal sob os holofotes da vergonha em pleno concerto para todos os outros que se insurgiram contra a sua lapidação pública.

Este é um tempo e um lugar em que o desporto favorito de uns quantos é adiantar palpites sobre as vidas dos outros. Sobretudo quando há comportamentos, palavras ou até omissões que os colocam sob a égide do bastão da moral convencionada e sob o escrutínio de gente que se autoconsidera empossada de um direito especial de julgar e, se necessário for, de punir os comportamentos, palavras e até omissões que se desviem dos cânones de que são zeladores.

Como continuo a acreditar que em momentos excecionais é preciso chocar as consciências, desafiando-as a um teste interno de coerência, apeteceria (se não fosse critério meu o da indiferença perante a vida das outras pessoas) esquadrinhar os meandros das vidas dos justicialistas da moral e dos bons costumes e finalizar com uma interrogação: quantos deles nunca deram a sua facadinha na tão, por eles apregoada, sagrada fidelidade conjugal? Sendo-me indiferente às outras vidas, e não tendo propensão para teorias conspirativas, seria levado a apostar num escrutínio surpreendente (ou, no fundo, talvez não...), no apuramento da percentagem dos juízes da moral que, afinal, não têm nenhuma moral para julgar a moral dos outros, a crer pelas suas fracas credenciais, tão fracas quanto a carne própria. Ou seja: os que se levantaram contra os adúlteros (note-se: não foi a favor das vítimas deste adultério) serão, em muitos casos, os primeiros a exibir um cadastro não recomendável quanto ao exercício do adultério.

Mas, para o caso, isso nem interessa – a não ser pela revelação da incoerência de muitos dos juízes, que automaticamente os inabilita para a função a que se autopromoveram. O que importa é essa tendência execrável de olharmos de mais para as vidas dos outros e salivarmos de indignação quando, em certas circunstâncias, eles e elas desviaram da moral padronizada. Desconfio que quem assim procede tem vidinhas desinteressantes e uma irreprimível vontade de contribuir para o princípio geral da poligamia. O resto fica por conta da inveja.

29.7.25

Interpelação ao diário

Jeff Buckley, “Last Goodbye” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=aRrKUtYgzDU

Temos um diário de bordo, mas quase todos não sabemos. Dirão: fica por conta da memória, que assenta nas memórias que desfilam numa sucessão veloz de telas mentais. 

Podemos interpelar o diário sobre o passado: para um avivar da memória sobre memórias de tempos de antanho; para a confirmação de um acontecimento e da correspondente data; para a contextualização de um tempo e dos comportamentos respetivos; para a ajuda na interpretação de um episódio, de uma reação, das palavras ditas ou escritas, por voz própria ou por vozes outras. 

Também podemos interpelar o diário sobre o futuro. Se circularmos pelo exterior das ciências, é puramente indagativo. Um processo normal, mas talvez patológico, de querer romper com as teias da incerteza quando olhamos de frente para algo que sabemos existir (a menos que a morte malogre os planos), mas que desconhecemos como vai existir. O processo contorna a única realidade temporal tangível, o presente. Dos três tempos existentes, é o que menos interessa ao escrutínio. Porque mergulhamos de mais no passado, tanto que às vezes parece que estamos aprisionados a esse tempo e não chegamos a nascer para o tempo presente. Ou porque nos interessa muito levantar a ponta do véu sobre o porvir, mesmo que tenhamos aprendido sobre a impossibilidade dos oráculos, que depressa são desmentidos quando o presente se converte em futuro.

A sofreguidão em pressentir o futuro é equivalente à náusea do presente. Fugimos do hoje por temermos que não seja fonte de bem-estar. Passamos pelo presente como se o presente não tivesse acontecido. No grande salto em frente que é a passagem direta do passado ao futuro, fica quase tudo por cumprir. Toda aquela parte do tempo presente em vertiginosas digressões pelo futuro por existir. E toda a outra parte do tempo que fica gasta à custa da nostalgia (nas suas possíveis declinações). 

Quando a soma do passado com o futuro é um cardinal negativo, o presente foi trespassado. Soma-se passado sem ter o crédito do presente. A entrada no futuro já é feita em défice. Outras vezes, descontam-se do presente as quimeras por conta do futuro. O presente é sacrificado em nome do futuro e fica menos passado por contar. 

28.7.25

As flores não falam de mais

Talking Heads, “This Must Be the Place” (live in Santiago do Chile), in https://www.youtube.com/watch?v=CSDvcHE48zk

As flores são os compêndios que nos inspiram as cores que jugaríamos ausentes. Prefiro olhá-las viçosas, na exuberância de quem exibe vida. Prefiro apreciá-las nos seus campos, onde medram entre sintomas de aparente omissão dos espectros que, todavia, caldeiam o mundo. Não gosto de ser confrontado com as flores que jazem em floristas. Já são póstumas e enganam as pessoas que passam e não ficam indiferentes às cores extravagantes que ainda têm para mostrar.

Devíamos ser como as flores. Devemos-lhes a inspiração das cores torrenciais que têm para mostrar enquanto descansam nos seus campos e vivem sem que se dê conta de que vivem. Podíamos celebrar o silêncio das flores, convocá-lo para aquelas ocasiões em que a fala gongórica, o falar apenas por falar, a urgência em usar a fala como se fosse uma prova de vida, deixam as palavras ditas imersas em insalubridade. Devíamos aprender que as flores são os segundos sóis, elas mantêm-se garridas mesmo nos dias em que as nuvens se acastelam e travam a claridade. São os únicos sóis que não deixam de evocar as cores, entretanto prostradas pelo céu plúmbeo que ganhou dia.

As flores trazem cores às pessoas. E as pessoas, sabendo que as flores são efémeras depois de arrancadas aos campos onde medraram, fingem que elas estão vivas enquanto encherem as suas casas com as cores que são a sua fala. É por elas que as pessoas bebem as cores. E fingem que não são corpos póstumos porque as cores se demoram na sua morte, como podia acontecer com os corpos humanos. Deve ser por isso que as floristas são negócios que nunca deixarão de existir. As flores, como homenagens aos outros (quase sempre), despertam os sentidos ao emprestarem as cores relevantes que se substituem às sombras que adejam quando alguém partiu. É por isso que os amantes se oferecem flores, porque o amor tem de ser irrigado com a poesia das cores.

Fingimos que as flores não estão mortas quando as compramos ou quando as arrancamos pelo caule. A culpa é nossa, que sabemos ser corpos que se extinguem quando somos portadores do nosso estertor. O nosso encanto pelas flores é por termos inveja de elas manterem as cores mesmo depois de mortas. E de serem lições de um silêncio heurístico, cada vez mais um bem precioso e que rareia.

25.7.25

Um correr desaforido (sobre cimento e outras cores avulsas)

The Divine Comedy, “The Last Time I Saw the Old Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=mu7k2VA7aVM

A meta é sempre depois. Parece que alguém conspira contra nós, a meta sempre um pouco depois, liquidatária de adiamentos. Por mais que desatemos a correr desenfreadamente, a meta escapa-se entre os vestígios do horizonte, como se o horizonte se perdesse num outro horizonte depois dele.

O céu espera no entediante entardecer. A noite promitente demora-se, atira-se aos medos que se juram na incompleta safra do tempo vindouro. Parece que estamos reféns de um estaleiro permanente. As obras não chegam a estar inacabadas: nem sequer foram começadas, mas podemos encontrar, zelosamente guardados, os planos desenhados em estiradores de classe mundial. Não se diga que somos parcos em ideias. As provas das ideias estão no amontoado de papéis que são o seu contrato-promessa. Mas depois elas coalham na apatia, ou na torre de Babel dos procedimentos, amarelecidos numa vertigem de assinaturas daqueles que se ufanam de ostentar um poder. O poder de travar as concretizações que não passam de planos.

É contra esta miríade de relógios estroncados que corremos como se não saíssemos do lugar. À mercê de uma angústia composta por paradoxos: a impressão de que somos perseguidos pelo tempo, que está em constante aceleração como se a sua matemática fosse desmentida pela impressão que dele temos; e a inércia que nos endossa para a prisão do presente, como se o futuro estivesse em parte incerta.

Pelo céu em que se demora o olhar desfila uma paleta de cores, umas conhecidas, outras como se fossem páginas inauguradas num livro imorredoiro. Na imagem da inércia que nos atira para uma hibernação sem prazo de validade, os pés presos ao chão por um cimento indelével. Ao passarmos pelos corredores do tempo, sentimos as paredes a fugir como se não quisessem ser o amparo que os corpos instáveis precisam. Não é desta permanente erupção que precisamos – lamenta-se uma voz anónima.

E eu digo: precisamos de vulcões que sejam profecias da nossa permanente demanda pela diferença. Precisamos de sismos frequentes que desaprovem a languidez do tempo ocioso que se oferece como a anestesia que atira vidas para uma decadência precoce. Precisamos de todas as cores que enfraqueçam esse cimento que nos aprisiona ao tempo estático. Para podermos correr atrás do tempo, sem que seja ela a correr atrás de nós.

24.7.25

Quando é que acaba o Verão? (pergunta o neto à avó)

The Cure, “The Last Day of Summer” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=EDN13Elz4iM

- Avó, quando é que acaba o Verão?

- Mas qual é a pressa? Pois se é no Verão que tens férias da escola e todo o tempo livre para fazeres o que queres.

- Estou cansado de ter o tempo livre. Já percebi que o tempo é sempre livre, ninguém o consegue comandar.

            A avó ficou sem resposta. O tempo é o soberano da liberdade. Às vezes, quando se avivava a impressão de que o tempo ia numa correria desatada, formulava o impossível desejo de construir barragens que domassem o tempo do mesmo modo que domam os rios. Uma barragem para conter o tempo, retesando-o até que as pessoas ficassem preparadas para o que o tempo estivesse preparado para lhes destinar.

- Avó, não estás cansada do Verão? Estás a suar com o calor que está e só faz este calor no Verão.

- Vamos comer um gelado. Assim paro de suar.

- Tu gostas mais do Verão do que do Outono?

- Sim. No Outono parece que vamos a caminho do fim. Não gosto de fins.

- Dizes o fim como morte?

- Como a decadência que vem antes da morte. As pessoas mereciam não saber o que é a decadência.

            No Outono, quando passeia pelo jardim e não evita as folhas caducas que cobrem o chão por onde passa, sente o estralejar das folhas ao serem trespassadas pelos pés. Estão secas e encarquilhadas, estilhaçam-se como ornamentos de cristal. Patenteiam a fragilidade do Outono, como a decadência fala através dessa fragilidade. Os pedaços das folhas caducas somam-se ao restolho restante. Antes de abandonar o jardim, enquanto o semáforo para os peões não fica verde, volta-se para trás e aprecia como o jardim se transfigura com o Outono. Desde há alguns anos, pesa-lhe a pergunta excruciante se não será o seu último Outono.

- Avó, também posso comer gelados no Inverno?

- Podes. As geladarias não fecham no Inverno, nem as fábricas de gelados.

- Quando for o Inverno, levas-me a uma fábrica de gelados?

- Porquê?

- Quero saber como guardar o gelo para não suares no Verão.

23.7.25

Players, payers and prayers

Broken Social Scene, “Anthems For A Seventeen Year Old Girl”, in https://www.youtube.com/watch?v=wLaDksDOcE4

Quem paga para jogar é um jogador como os outros? 

O contraste com os que são pagos para jogar confirma o estatuto inferior. Mas só se ensaboarem as credenciais do elitismo e se considerarem que os únicos jogadores que merecem ser recompensados através das receitas de bilheteira são os profissionais, aqueles que se distinguem pela desenvoltura. É muito provável que, entre a audiência, haja jogadores amadores que precisam de pagar para jogar (o aluguer do campo, compra do material necessário e jantar após o jogo).

Os que pagam para jogar, amadores de boa cepa, não possuem o exclusivo da oração antes de se entregarem à função. Os da elite, antes de entrarem em campo, cumprem rituais que misturam o sagrado com o profano, a religiosidade com a superstição. As preces podem ser motivadas pela súplica para ganhar ou para que o jogo não dite uma sorte madrasta para a integridade física. 

As duas condições (praticantes e necessidade de oração prévia) confundem-se, independentemente de os praticantes serem profissionais ou amadores. É uma amálgama que não distingue uns de outros. Jogam e oram, estejam a ser pagos para jogar ou a pagar para ir a jogo. Só não se misturam dentro da arena onde decorre a função. Os critérios exigentes, vertidos em regulamentos detalhados que proíbem muito e exigem muito mais, não admitem misturas de estatuto: os praticantes pagos para jogar não admitem jogar contra os que têm de pagar para ir a jogo.

A diferença entre os que pagam e os que são pagos deveria enriquecer análises de extração marxista. Pois são os que já medram na abundância que recebem transferências daqueles que pagam para vê-los a irem a jogo. Estes, por sua vez, não só têm de desembolsar quantias elevadas para ver a destreza dos primeiros, como, quando querem simular as habilidades dos seus heróis, são chamados a abrir os cordões à bolsa outra vez. 

Houvesse uns cultores da metafísica sensíveis ao chamamento marxista e a sensibilidade para corrigir estas entorses sociais estaria na ordem do dia. Podiam aproveitar a propensão para as preces, com total visibilidade entre os afamados jogadores que exibem a sua religiosidade ao entrarem em campo, para angariarem um dízimo que fosse a favor dos amadores que sobem a campo para se divertirem e fingirem que são quase como os praticantes pagos a peso de ouro.

22.7.25

O naufrágio da civilização (conta a fascização de tudo)

Sonic Youth, “Shadow of a Doubt”, in https://www.youtube.com/watch?v=tFNnvQLvs7I

O fascismo cerca-nos. Nós, os que recusamos (e recusámos) o fascismo, sentimo-nos acossados como se fôssemos ilhas e o fascismo fosse o soberano das marés que empurram o fascismo para dentro dos arquipélagos. O lugar-comum que tomou conta do discurso político e de alguns comentadores influentes transfigurou o fascismo num arsenal monotemático que se atira contra o inimigo ou o adversário (consoante o grau de radicalização do sujeito que desqualifica), reduzindo-o a um banal “fascista”. Assim se reinventa um conceito e se ofende a História e as vítimas do fascismo nela emolduradas. 

Quando o anátema é titulado por intelectuais, o caso fica mais sério. Se até eles trivializam o conceito e encerram quase todos os males numa categoria operativa ao atropelo da História e a Ciência Política, é o incómodo que aflora. Segundo António Guerreiro (“A vida não fascista”, Ipsilon, 11.07.25), “independentemente de estar a acontecer uma disseminação de algumas formas históricas do fascismo, o triunfo das afecções fascistas marca o nosso clima epocal”. Entre os vários exemplos oferecidos como prova do enunciado (nos quais revejo sintomas que contaminam a sociedade contemporânea), Guerreiro avança com os “(...) actos e [os] prazeres que nos são incutidos (por exemplo, a televisão, o turismo e o entretenimento são actualmente concentrados de vida fascista)”. 

Os populismos assustam-me. Também os de esquerda radical – convém não sermos seletivos. Os partidos de extrema-direita, ou de direita radical, como lhes queiramos chamar, que transpiram fascismo ou são portadores de uma retórica que se aproxima do fascismo tal como o conhecemos, são miasmas que devem ser combatidos com as ferramentas da democracia e da cidadania. A sua linguagem, a reação a assombrações fantasiosamente esgrimidas, a forma como se servem de uma bagagem de “ideias” (as aspas são intencionais) vão ao encontro do que muita gente quer ouvir ou ver defendido nas instituições representativas dessas vozes; tudo isto se abeira do grotesco; é um retrocesso civilizacional, a trincheira da denegação da História; no limite, conspurca o espaço demoliberal que medrou depois da derrota dos totalitarismos em 1945 e em 1989.

A banalização do mal, reincarnado no fantasma fascista agitado por vozes militantemente de atalaia, pode ter contraindicações. Primeiro, a banalização do espectro fascista é o úbere de um cansaço social, deslegitimando as sucessivas advertências tituladas por um paternalismo que gera anticorpos. Alguns destes ativistas deviam interiorizar os efeitos do (seu) ativismo antifascista. Aos olhos dos resultados eleitorais, numa mancha que se alastra pelo mapa fora, retira-se uma de duas consequências: cada vez menos gente se revê na retórica dos diligentes antifascistas e desvaloriza o cenário dantesco que esbracejam; ou cada vez mais gente manifesta escolhas erradas quando se depara com a urna de voto, assim se derrapando para uma sobranceria que não abona a favor de quem a pratica. 

Segundo, por maior que seja a repulsa provocada pelos abencerragens desta amálgama a-ideológica, protagonizada por personagens que não passam de oportunistas; por maior que seja o temor que causam, eles e aqueles que representam (não interessando saber se estes aderem espontaneamente ou se é por reação epidérmica contra quem os ataca), pelo pressentimento de quererem corromper a democracia por dentro; a História recente prova que quando chegaram ao poder não cancelaram eleições nem mataram a democracia por dentro (dou de barato, como exceções, os acontecimentos no Capitólio e no Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal depois de Trump e de Bolsonaro terem perdido eleições). 

Por último, é legítimo questionar os pergaminhos democráticos de algumas dessas vozes que continuam vigilantes a desfeitear os planos fascistas de implosão da democracia. Os curricula vitae não se apagam dos registos.

Olhando em retrospetiva, já não sei ao certo onde está a causa e o efeito. Diria um observador atento e preocupado com a preservação da democracia que a emergência da extrema-direita (e de uma gramática que ressoa tempos atávicos do totalitarismo correspondente) é a causa e o recrudescer de uma militância antifascista é o efeito. Tenho a impressão que as variáveis se inverteram. A abnegação dos empenhados combatentes antifascistas que já não resistem ao fascismo a partir da clandestinidade, atuando desde confortáveis posições garantidas pela democracia demoliberal (que alguns deles abjuram na sua declinação liberal), a insistência com que esbracejam o espectro do fascismo, ainda em forma embrionária ou já como materialização (decerto exagerada), tornou-se na causa de muitas pessoas se refugiarem em partidos de extrema-direita que podem ser reincarnações do fascismo, reagindo contra a arrogância intelectual que é instrumental a esse ativismo. Este refúgio é o efeito.

Para se perceber a complexidade dos tempos modernos, e de como somos (menos os fascistas) ilhas cercadas pelo fascismo, Guerreiro propõe o conceito de “não-fascismo” como “(...) uma atitude crítica que se subtrai às afecções fascistas. Estas não são um exclusivo dos fascistas que ousam ou não dizer o seu nome, habitam também muitas vezes o espírito e as acções de gente que proclama o antifascismo.” Por este andar, temo que, através deste texto que apenas reivindica o direito ao pensamento crítico, esteja a dar o meu contributo para o catecismo fascista que tem sido servido como uma maré-alta entre cada vez mais gente. Quem não se revê no fascismo pactua com o fascismo, sendo contaminado por essa lama hedionda que vem alastrando no tempo e no espaço. Ou se é ativista na denúncia do fascismo latente que ameaça liquidar a democracia, ou é-se fascista por omissão. O “não fascismo” não admite meio-termo. Pergunto-me se esta irredutibilidade não é, no código semântico do “não fascismo”, uma variedade de fascismo.

Para meu sossego, dispenso que me imputem responsabilidades que não reconheço. Quanto ao demais, convenço-me, a cada passo desta coreografia que segue a linha do tempo, que há quem perderia a razão de existir sem a causa da luta antifascista. E essa, talvez, seja uma das piores doenças da nossa civilização. O efeito da fascização de tudo é contraproducente: quanto mais se fala do fascismo e dos perigos que encerra, maior a atração pelos partidos de extrema-direita.

21.7.25

Punchline

Deftones, “My Mind Is a Mountain”, in https://www.youtube.com/watch?v=cgh_jEm5twE

(Aviso: contém linguagem eventualmente chocante para leitores mais sensíveis)

O meu killer instinct é prosaico: umas cebolas apodrecidas, entretanto olvidadas em seu ninho, transformaram-se no habitat ideal para um bando de mosquitos que prosperou enquanto não dei conta da colónia residente. Descoberta a sua existência, não parei enquanto não extingui, um a um, os mosquitos. Alguns deles, gordos que até deixavam um rasto de sangue depois de esborrachados pela minha mão, exibiam a prova do crime: aquele sangue era meu.

Desconheço o que será pior: se este genocídio dos mosquitos que medram na merda em que se transformam cebolas apodrecidas, se encomendar o mundo a uma prática que ora significa prazer, ora corresponde a alguma violência. Sim, o “mundo que se foda”, em inglês que é menos ofensivo para os ouvidos (e as sensibilidades) sensíveis, passe a redundância. Um músico veterano (Victor Torpedo), que voltou a gravar um disco há pouco tempo, exibindo prova de vida, disse-o em inglês: “fuck the world”. Considero que, para desagravo das armadilhas constantes que o mundo mete no nosso caminho, podia-se encomendar o mundo para outra função, que o sexo, tirando comportamentos abjetos (sexo contra a vontade de um dos intervenientes), é uma função nobre.

É muito diferente se se disser “vou-te foder” – ou, regressando ao tema do pessimismo antropológico, tão pessimista que a desforra implica a condenação do mundo inteiro ao sexo por via de um “que se foda”. A formulação encerra uma diferença que faz toda a diferença. “Que se foda” é impessoal, determina, na significação da linguagem codificada da expressão, um desinteresse pelo fado de alguém ou de algo. Se dizemos, como Victor Torpedo, “que se foda o mundo”, estamos a sair da carruagem e a deixar de dar o nosso contributo, por modesto que seja, para influenciar o curso do mundo. Quem se demite desta responsabilidade destina o mundo a esta função, com toda a impessoalidade inerente a quem proclama “que se foda”, pois não interessa o “com quem” da função. É mais para o onanista (o que não deixa de ser sexo).

Pelo contrário, “vou-te foder” é personificado. Tem um sujeito que é o destinatário e outro que é o promitente. Para gáudio dos melancólicos que desconfiam que o mundo inteiro conspira contra eles, a expressão tem o sentido de uma ameaça e pode corresponder a um equívoco. Para a última hipótese concorre a possibilidade de o destinatário não se importar de colaborar na função pelo prazer que estima conseguir, o que esvazia a expressão idiomática de significado (se o seu significado metafórico for o correspondente ao “vou-te foder” como promessa de materialização de um mal).

(Já para não especular sobre as ramificações da ameaça que, se for levada pelo sentido meramente literal da expressão, pode colidir com interesses de terceiros, nomeadamente se estiver em causa a transgressão da monogamia, que, por sua vez, se pode desmultiplicar em diversos atores e com variadas consequências. É uma autêntica caixa de Pandora.)

Sugiro mais cuidado na utilização das palavras. É como o fascismo, tão banalizado como expressão do mal e como abjuração dos oponentes de ideias, que começa a perder significado. Em vez de se mandar foder alguém, ou em vez de condenar tudo e todos, impessoalmente, a um “que se foda”, traduzam-se estas expressões por aquilo que significam. O sexo não é uma ameaça, a menos que coincida com os desvios que bulem com o consentimento de uma das partes. 

Que não se maltrate o sexo como eu maltrato a colónia de mosquitos que já tinha colonizado o ninho de cebolas. O sexo não pode corresponder a um killer instinct.

18.7.25

Amanhecer (capítulo II)

Ólafur Arnalds & Talos, “A Dawning”, in https://www.youtube.com/watch?v=nEBbhgMp8Ok

De cada vez que amanhece sinto as estrofes outonais a colonizar as veias. Amanhecer é um sortilégio, o lento evaporar da noite a levantar as bandeiras para a vertigem-que-aí-vem. Aqueles momentos em que o torpor demora a imolar, como se o corpo resistisse a olhar de frente para o dia, são o tributo ao sortilégio do amanhecer. 

O silêncio à volta, a discreta ocupação do crepúsculo pela luz inaugural, o orvalho deitado sobre as janelas, embaciando a rua, como se demorasse mais tempo a devolver a noite à sua vez de hibernar. É ao amanhecer que as forças autênticas são convocadas, tomando conta da inspiração espontânea e o pensamento flui sem se intimidar com embaraços. As ideias organizam-se em esboço, preparadas para irem a concurso ao longo do dia. A alvorada é abençoada por umas nuvens finas e dispersas e feixes alaranjados tingem as nuvens. Todo o céu parece que está a gritar através dos primeiros raios de sol que se fazem notar com a mediação dos tons alaranjados. Como se fosse o parto da manhã, doloroso como são os partos. 

Mas a manhã não se lamenta. Apenas se faz anunciar através dos primeiros lampejos que são uma amostra de timidez, porque quem assim se condói não consegue falar através de uma voz vívida exteriorizada por uma cor desimpedida e luxuriante. A manhã faz de propósito: os tímidos raios inaugurais que arejam o céu cor-de-laranja anestesiam os pálidos aventureiros que desafiam a alvorada. O dia não tem de nascer de parto forçado, feito de um impulso súbito e bruto. Seria como olhar para o sol de frente e sem pré-aviso, o olhar instantaneamente cegado pelo aluvião de luz desembaraçada, e as pessoas imersas numa paradoxal escuridão durante uns instantes. 

Amanhecer acompanhando a inauguração da manhã é o testemunho de um modo de vida que recusa a urgência da palavra, a violência das decisões forçadas, as escolhas descompensadas pela vertigem de um tempo que se teme ser sempre efémero. Se o amanhecer de hoje não reproduzir este quadro, é porque o dia nasceu plúmbeo e a constelação de cores e luzes ficou embaciada pelas nuvens. Mas um amanhecer sortílego está ajuramentado para um dia dos que estão para vir. Nunca se perde por essa demora. 

17.7.25

Corria os dias em forma de apenso

PJ Harvey, “Dress”, in https://www.youtube.com/watch?v=ah9NdBKkEQY

Desde que ouvira que não é ninguém, e isso fora dito por outro, como ele, zé-ninguém, nunca mais teve insónias. A imaturidade de outrora desassossegava-o, ateava um fogo estrénuo de quem tinha para si grandes planos e de si uma tremenda imagem de quem se situava no centro do mundo e haveria de ser, pelo menos, credor da toponímia da cidade onde nascera (ou de outra qualquer, também servia).

Ouvir dizer, em jeito de terrível sentença, próprio de quem cai nua amargura insidiosa depois de a ouvir, que era irrelevante para o resto do mundo e, para os mais chegados, apenas um pouco mais do que isso, teve um efeito sísmico. Era um bom efeito sísmico: nunca mais voltou a olhar no espelho e a consagrar à sua idealizada grandeza estrofes do que poderiam ser poemas homéricos em seu honra. Os sonos passaram a ser dignos de um santuário de serenidade, deixou de ser acossado pela insónia e, o que era pior, por pesadelos medonhos.

Agora estava em paz. Concedia: ele não era ninguém, e só era alguém ao pé de uma multidão de ninguéns, porque todos seriam reduzidos à insignificância se ambicionassem privilégios que só habitavam nos melhores sonhos. Já não tinha dores de cabeça causadas pela tarefa volumosa de ser alguém na vida, como o advertira um tio no auge da adolescência. Reduzido à insignificância profetizada por um tão insignificante como ele, averbou as credenciais da paz interior e nunca mais se quis desapossar delas. Desaprendeu a angústia.

Dantes é que a grandeza alimentava ilusões disfarçadas de sonhos. Agora sabia o que fora viver desse jeito: um chão sempre pantanoso, habitando por pessoas peritas em fingir, pessoas dissimuladas que se enredava em palimpsestos de mentira, a mentira habilitada por sucessivas mentiras que transfiguraram a verdade em palavra morta.

Assumiu que era apenas uma nota de rodapé que atravessava os dias com a mesma indiferença com que eles testemunhavam a sua existência. Agora sabia que todos são matéria apensa a um tremendo vazio que trespassa os dias que assentam em alicerces de filigrana. Os anjos eram espectros hauridos pela displicência. Os deuses tinham pedido a demissão (muito embora, não tendo superiores hierárquicos, ainda esteja por desvendar a quem dirigiram as cartas de demissão). Os alucinados que se vangloriavam como espécimes únicos, convencidos que eram credores das genuflexões dos simples mortais, erravam ao acaso, maltrapilhos, angustiados por falta de confirmação das suas ambições. As sereias nunca mais voltaram a submergir. Aprenderam a imitar os peixes. 

E ele aceitou que não passava de um apenso de um todo todavia incapaz de identificar.

16.7.25

Nó na garganta

Boards of Canada, “Reach for the Dead (for Tomorrow’s Harvest)”, in https://www.youtube.com/watch?v=2jTg-q6Drt0  

Por vezes, usamos gravatas apesar de ninguém as ver. 

Não somos à prova de angústia. Se somos assaltados pelo imponderável, se ficamos na mão de contínuos sobressaltos e o coração se submete a taquicardias, é ao sentirmos um aperto na garganta que nos aproximamos da apneia dos sentidos. A falta de ar é mais do que simbólica. 

Quando sentimos o nó na garganta, a lucidez tende a ausentar-se. Se não a perdêssemos saberíamos que a reação imediata é desatar o nó que cerceia a garganta e limita o ar que a atravessa. Quanto mais apertado for o nó, maior é a privação de oxigénio, o que explica a perda de lucidez que vai subindo com o tempo que passa. Às vezes, a pressão que consome o pescoço apertado e torna o ar rarefeito impede o impulso que alivia o nó que adeja sobre a garganta. A menos que alguém venha em socorro da vítima e por ele alivie a atadura, o nó pode ser irremediável se for implacável ao abraçar-se à garganta.

Os nós na garganta podem ser voluntários quando a lucidez se ausenta antes de a garganta ser garrotada. É um processo autoinfligido. Quando o risco assumido é mal estimado e não se calculam com rigor os efeitos imprevisíveis, as consequências sobrepõem-se à vontade e ficamos à sua mercê. É como ser testemunha de uma súbita subida de nível de um rio alimentado pela chuva torrencial de dias consecutivos e não poder reagir, a não ser tomar as precauções atempadas e subir para cotas mais elevadas e observar como as águas vão subindo de nível, transbordando para as terras limítrofes. Se não dermos ouvido aos avisos das autoridades e continuarmos na ilharga do caudal, vamos ser apanhados pelas águas que se revoltam contra o leito que recebe o caudal.

Há gravatas que apertam menos do que os nós na garganta que nos assediam.

15.7.25

Vender a alma ao diabo

Ólafur Arnalds, “Still/Sound” (Sunrise Session), in https://www.youtube.com/watch?v=-ndx4GOxpqc

O diabo tem rosto e tem nome. E não é diabo, o seu nome. Se alguém vende a alma ao diabo, é porque a identidade chegou ao seu conhecimento. Há nomes que vêm a tiracolo do diabo. O resto fica por conta das almas piedosas que se dedicam a fazer julgamentos dos que vendem a alma ao diabo. Alguns deles serão o diabo disfarçados de penhores da moralidade.

Os que vendem a alma ao diabo serão apedrejados pela moral coeva. Estão – dizem as línguas populares – em maus lençóis. A génese dos lençóis de má rês é a sua ligação ao diabo. O diabo tem este efeito peçonhento, onde toca fica tudo contaminado. Todavia, as pessoas devem ter cautela com o que fazem e com os julgamentos sumários dos outros: não é por alguém estar em maus lençóis que se deitou com o diabo – ou, por outras palavras, há lençóis puídos para além dos que foram contaminados pelo demo.

Os que vendem a alma ao diabo estão pior dos que se limitam a empenhá-la. Seria a conclusão liminar do pensamento corrente. Está errado. Quem empenha a alma ao diabo recebe um estipêndio pela transação. Dela se vê desapossado enquanto persistir o contrato de hipoteca – a alma fica longe do corpo que titula e o pobre corpo limita-se a vaguear numa orfandade sem paradeiro. Alugam-na temporariamente, não se importam com o (certamente) mau uso que lhe será dada. 

Pode-se contrapor que empenhar a alma ao diabo é menos mau do que vendê-la, pois quem a vende nunca mais a resgata. Quem a empenha pode a qualquer momento levantar o penhor e reapossar-se da sua titularidade. Há três contraindicações que não confirmam o lugar-comum. Primeiro, não é possível apurar os danos causados pelo uso da alma pelo diabo. É provável que lhe tenha sido dado mau uso. Não se esperem usos nobres ao estimar a atividade do diabo. A alma resgatada do penhor é uma alma a precisar de reparação, podendo até ser irreparável. Segundo, o diabo pode recusar a intenção de resgate do titular original da alma. Enquanto se mantiver essa recusa, o temporário vai sendo adiado numa medida próxima do perene. Terceiro, nas condições contratuais da venda da alma ao diabo não há cláusulas que impeçam o seu resgate. O preço terá de corresponder ao empate de intenções entre o demónio e o titular da alma. E à vontade de o diabo concordar com a devolução da alma. 

Para os puristas, recomenda-se que a alma fique longe do território por onde o diabo erra. Mas mesmo esta recomendação está datada, agora que tudo e mais um par de botas se compra e vende online

Alguém sabe o domínio do diabo na Internet? (Será db?) E os que vendem, ou empenham, a alma ao diabo, não se transfiguram num demónio?

14.7.25

Submergir a manhã

Fontaines D.C., “Just Like Heaven” (live at Jameson Unplugged), in https://www.youtube.com/watch?v=kzRlLRvoAig

Não esqueças o escafandro. Submersa a manhã, não te percas nas funduras onde se esconde o tesouro que a manhã não quer revelado. Nadarás nessas águas modestamente profícuas – não levantes as esperanças se não sabes de que linhagem são feitas essas águas.

Sabes que enquanto estiveres submerso na manhã, ninguém dá conta das tuas lágrimas. Ninguém notaria; não vês vivalma enquanto esquadrinhas a manhã submersa, parece que só tu a habitas e nem assim podes dizer que a manhã te pertence. 

Não insinuas que a manhã devia ter um intermediário. Por ser inaugural e despontar as pessoas do adormecimento noturno, a manhã tem vontade própria que não é corruptível ou permeável ao exercício de influência de quem a frequenta. À submersa manhã depões-te como um vassalo. Ela dir-te-á que curvas atravessam o dia.

Não ouses desafiar a manhã. Ela pode deitar sobe ti uma maré iracunda e nem o escafandro te salvará. Mas não precisas de ter medo da manhã assim congeminada. Ela é como certos animais selvagens: só se insubordina contra as pessoas quando se sente ameaçada por elas. Por isso, a manhã odeia boémios.

Nas tuas habituais digressões submarinas, já conheceste manhã diferentes. Há as manhãs baças, com as suas águas túrbidas que não deixam nada à mostra; há as manhãs claras, com as suas águas translúcidas como se fossem retiradas de um atol; há as manhãs agitadas, os ventos matinais a descomporem as águas que ficam agitadas nas profundezas, as correntes erráticas empurrando o corpo de um lado para o outro; e as manhã indiferentes, próprias das águas temperadas que acontecem na maior parte do tempo. 

Um dia, descobriste um tesouro escondido num recanto da manhã que estava ainda submersa. Perguntaste à tutora da manhã o que acontece ao tesouro quando a manhã se liberta das águas fundacionais. Ninguém te respondeu. Confirmaste que o lugar onde viste o tesouro parecia diferente quando a manhã se libertava das águas inaugurais – e o tesouro não estava lá. No dia seguinte, deste com o paradeiro do tesouro, que estava outra vez no mesmo lugar.

Só muito tempo depois é que percebeste o sortilégio do tesouro. A manhã escondia-o quando a maré ficava baixa e ela se despojava aos olhares ainda estremunhados da cidade. Se o tesouro fosse revelado, poucos estariam interessados em ser precoces como a manhã. Poderiam tender a devorá-la.

Há tesouros que se perdem se forem descobertos.  

11.7.25

O bolo de arroz não é feito com arroz

Siouxsie and the Banshees, “Israel” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=EYJOq6VnV2U

1. O licor de merda, que se fabrica em Cantanhede, não é feito com materiais escatológicos e tem o nome que tem – não há memória que o uso da palavra “merda” seja qualificativo do licor, como se os primeiros provadores da mistela tivessem torcido o nariz por ter um sabor desagradável, pese embora as gerações futuras terem desmentido a proclamação e, mesmo assim, a tradição de o beber se tenha mantido assim como o seu nome.

2. Na infância, o Tó Gordo fazia parte do núcleo de amigos. Era magro que nem um espeto. Nenhum de nós escapava a alcunhas e como tínhamos desenvolvido um espírito de contradição incontroverso – as alcunhas não eram abjuradas por ninguém –, encontrávamos alcunhas que retratassem o que as pessoas não eram. Como o Tó era muito magro, nós, os do incontroverso espírito de contradição, inventámos uma alcunha que era a antítese da massa corporal do Tó. 

(O Adriano escapou a este jogo de espelhos que consistia em arranjar um qualificativo, ou um nome evocativo, que fosse o contrário da pessoa sujeita à alcunha. O Adriano era ainda mais magro, tão franzino, tão franzino que só nos lembrámos de o alcunhar o “pulga”, não sendo, todavia, alheio o facto de o Adriano ser o mais irrequieto de todos nós.)

3. Por estes dias, há um ex-político e ex-primeiro-ministro que está a ser julgado por inúmeros crimes que não são abonatórios de si mesmo. Em tempos, por interpostos procuradores, arranjaram-lhe o cognome de “animal político”. As vozes comuns acabaram a tresler o proclamado: aceitaram-no como “animal político”, banalizaram-no enquanto tal como modo de afirmar a sua autoridade e a obstinação pelas certezas incontestáveis de que era portador, assim como a forma contundente com que enfrentava e derrotava os adversários. Esqueceram-se que os animais, quando assim são tratados, são os animais que estão no oposto dos humanos. A falta de racionalidade explica muito do interminável episódio. 

4. Em Lisboa, há um cemitério dos prazeres. Aproveitei o nome do cemitério para refletir demoradamente sobre a morte. Ou se atesta que a morte nos transporta para uma dimensão de prazeres que não conhecemos na vida terrena, muito a aproximando da promessa de setenta virgens celestiais aos mártires pela causa do Corão (de acordo com os seus exegetas fundamentalistas, que não se desprendem de um viés de género), ou somos subtilmente convencidos que a morte não é o apocalipse, pois ninguém se lembraria de ligar prazeres (contudo inomináveis) à morte que por sua vez os liga ao nome de um cemitério.

(Afinal, o bolo de arroz leva farinha de arroz. Acabei de o confirmar na receita. O que deita por terra toda a teoria deste texto.)   

10.7.25

O homem que não queria ficar em primeiro lugar

Deftones, “Digital Bath”, in https://www.youtube.com/watch?v=O_IIAYZL1R4

Hoje é diferente porque hoje as pessoas ambicionam visibilidade, querem ser diferentes apesar da homogeneidade dos gostos, querem partir da indiferença de estatuto que promovem ao perfilharem gostos semelhantes para se distinguirem dos demais como se fossem peças únicas de um mosaico por igual. Neste hoje que atravessamos, as pessoas reivindicam o direito à diferença assente nos predicados da igualdade, mas ficam reféns de um paradoxo: como podem basear a sua natureza única na cidadela da igualdade, se a igualdade dissolve as diferenças? 

Hoje, todos querem estar uns degraus acima dos demais. Todos querem subir os degraus que os separam de uma posição cimeira, como se apenas interessasse o efeito ilusório dos rankings disto-e-daquilo. Hoje, ser número um é destino inapelável, a suprema autorrealização. O direito a sermos iguais confere a visibilidade do eu por oposição aos outros, dando corpo a outra contradição interna e insanável: temos direito a vir em primeiro lugar porque assim nos é garantido pela lógica da igualdade, mas assim que nos entronizamos no primeiro lugar estamos um degrau acima dos outros e acabamos por ser os procuradores da desigualdade.

Hoje é doloroso viver neste hoje que nos cerca com tanta imponderação, com tanta frivolidade a salgar a existência, com a bússola alquebrada pelos olhares míopes que dedicamos às coisas. Somos seduzidos pelas delícias da democracia que se agarra ao esteio da igualdade. Quando damos caução ao ensimesmar, beneficiamos das oportunidades da democracia e, ao mesmo tempo, sobre ela praticamos sevícias não reconhecidas no momento do ato. A fulgurante subida a palco, permitida pela banalização da democracia e pela igualdade que, de tão apregoada, está gasta, alimenta errâncias narcísicas que convocam a urgência do primeiro lugar e destinam os outros a lugares inferiores.

Este é um hoje decadente, preso às incongruências internas de um modelo que só respira teoria, em que todos querem ser número um como se fosse possível um empate multitudinário no lugar cimeiro dos rankings chamados à colação. Hoje somos destinatários desta igualdade vulgarizada e contribuímos para a sua degradação. Somos os primeiros a gastar os predicados da parceria entre democracia e igualdade. Somos convidados a ser a peça central do universo, como se tudo o resto fosse centrífugo. 

Hoje, diligentemente educados sobre a nossa gregária condição, praticamos a teimosia do primeiro lugar. E, de uma assentada, promovemos as exéquias futuras do sistema que semeou a esperança de podermos figurar no primeiro lugar. 

9.7.25

Descódigo de conduta

Max Richter, “Dona Nobis Pacem 2” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=v0UBZ3hINBY

Quem quisesse que descodificasse as profundas grutas onde a bondade e outros nobres atributos tinham ninho. Não açambarcava os laudatórios provérbios da existência, mas também não se invalidava como irremediável espectro a sondar a decadência dos tempos. Se havia crises a pontuar os minutos descompensados, elas não eram existenciais. Deixava os remoques de angústia para outras almas. Da dele, dispensavam-se os enredos capazes que destilavam o bom vinho. 

Não sabia descodificar os códigos de conduta que tinham sucessivas edições sempre com impressão em papel impecável, um papel que não se gastava com o uso, gramagem acima da média. Assim deviam ser os códigos para não ficarem puídos com a estultícia do tempo que se avinagra à medida do seu avanço. Os mentores sabiam que as pessoas precisam de guias soberanos; devem, as suas lições, ser assertivas para ninguém (ou quase) se tresmalhar dentro da teia social. Os comportamentos dissidentes eram prevenidos com a persuasão com que se combatem os piores males com pública visibilidade.

Não se interessava pela sindicância exercida em abono dos códigos de conduta. Se era proibido fumar, e os locais admitidos cada vez mais restritos, ostentava o cachimbo blasé em pose provocatória. Se o álcool não era aconselhado, partia de bar em bar até se esquecer do paradeiro do dia. Se foi instituída uma gramática por imperativo de uma minoria bem pensante, reinventando a semiótica, insistia nos vocábulos, nas frases feitas, nas expressões idiomáticas que tinham perdido validade na espuma do tempo. Se os vigilantes de serviço apostavam em sondar os costumes pessoais, tornava-se contumaz, incorrigível infrator de muitas regras constantes do capítulo dos bons costumes. 

Não contassem com ele para engrossar o rebanho ordeiro que se deixa apascentar, iludido pelas promessas de pregresso e pela ideia gasta de que o progresso é sempre melhor do que a página que ficou para trás. Era matéria-prima insubmissa, carne imune às provações vindicadas pelos ascetas da obediência, profeta da descodificação dos códigos depressa virados do avesso. Lobo solitário, cada vez mais nos antípodas da matilha orquestrada que acenava com a hibernação diante da prestimosa condução das almas feita pelos gurus assim entronizados.

8.7.25

A página em branco

Morrissey, “How Soon Is Now” (live at Festival Viña del Mar), in https://www.youtube.com/watch?v=5z6aACs1MKQ

Entre a página quinze e a página dezoito estavam duas páginas em branco. No prefácio estava a explicação: o leitor tinha liberdade para escrever o que lhe apetecesse nas páginas em branco. Desse seguimento ao enredo antecedente, ou não. Se desse continuidade ao enredo, podia confirmar, três páginas depois, se o enredo escolhido pelo autor coincidia, e em quanto, com a sua hipótese; podia intuir em que fração conseguia meter-se na cabeça do autor. Se não quisesse perfilhar o fio condutor da história, o autor dedicava-lhe umas palavras no posfácio: agradecia que digitalizasse essas páginas e as enviasse para o seu email pessoal.

Segundo o contrato com a editora, ao fim de seis meses o autor e a editora fariam o apuramento dos itinerários dos leitores. Quase dois terços dos leitores que responderam ao desafio não deram seguimento ao fio condutor que a história havia seguido até à página quinze. O autor não o disse a ninguém, mas saboreou o momento como uma conquista pessoal: era sinal que a história não era previsível; tinha congeminado um enredo original. 

Mas não era isso que interessava ao autor e à editora. Queriam perceber os vários itinerários seguidos pelos leitores que não se acanharam perante as duas páginas em branco e corresponderam ao repto. Nas curtas duas páginas deixadas ao critério dos leitores, as história multiplicaram-se. Quando tinham contacto com as páginas anteriores, o contacto era marginal. Os autores que partiram desde a posição de leitores deslaçaram as portas da criatividade e construíram uma miríade de histórias, multiplicando as possibilidades – desde as que tinham alguma ligação com as páginas precedentes, até às que arremeteram por caminhos originais e imprevisíveis, como se, nestes casos, os autores que partiram desde a posição de leitores quisessem afirmar a sua autonomia perante o autor. 

A versão preferida foi esta: 

“Fiquei surpreendido com as duas páginas em branco a partir da página 15. Só quando acabei de ler o livro e encontrei o posfácio é que percebi a charada. Se não fosse assim, estava convencido que tinha sido uma gralha da tipografia – uma gralha parecida com a que me impediu de ler o prefácio, pois as duas páginas que o contêm estavam coladas uma à outra.”

7.7.25

Para que precisamos da redenção?

The Limiñanas, “Faded”, in https://www.youtube.com/watch?v=91nScqn8lUY

Precisamos de esconjurar o futuro. Como se a mão que se dá a esse tempo venha limpa do tempo pretérito para travar os instintos que possam contaminar o tempo por haver. Os arrependimentos são cíclicos e apenas mostram a formidável capacidade que temos para errar. 

Não há nenhum mal nisso (no erro). Quando investimos na redenção parece que temos vergonha do futuro, se o futuro insistir nos erros mesmos do passado. Porque o erro é imprevisível. Mesmo que se fique a dever apenas à nossa vontade e não dependa de circunstâncias exteriores, o erro acontece com a mesma naturalidade da respiração ou da trajetória invisível das células que navegam, invisíveis, pelo corpo.

A redenção é uma das piores invenções da humanidade. Força uma confusão entre humildade e humilhação. Parte de humildade: a admissão do erro, que vai rareando num mundo ditado pelo ensimesmar e pela infalibilidade, muitas vezes exteriorizada através do endosso da culpa para o exterior. E termina na humilhação: a exposição pública do arrependido, como súplica para a indulgência dos outros que se sentam num involuntário lugar de juízes. O processo é um desinvestimento interior e a convocatória abusiva dos outros. O desapossamento dos efeitos dos nossos atos corresponde à exposição perante o juízo que nos é exterior. Às vezes, é uma violência que exportamos para a raiz dos outros.

A redenção pode ser uma máscara artificial que finge as dores que causam tanta consumição. É uma forma de apagar o passado, como se fosse determinante para um começar de novo que começa de novo repetidas vezes, num processo interminável e que perde credibilidade à medida que se repete. A redenção coloca-nos sob a égide de uma figura postiça. Insatisfeitos com decisões ou palavras, invocamos a redenção como nossa procuradora. E regressamos ao futuro com a folha em branco, preparados para voltar ao erro sem que o erro seja uma repetição.

O perdão só é preciso quando existe culpa, e culpa reconhecida pelos próprios. O erro é-nos inato. Não precisa de perdão. Dispensa a redenção.

4.7.25

Agora que o Dalai Lama anunciou a reincarnação, há um lampejo de esperança

Dapunksportif, “Rock’n’Roll Salvation”, in https://www.youtube.com/watch?v=yooVZxyIPw0

Este é um texto arriscado, pois os tempos que vivemos são vítimas das emboscadas dos que não aceitam a dissidência ou confundem a crítica, ou apenas um juízo, seja estético, ético, ou metafísico (sempre legítimos, em homenagem à liberdade de expressão), que depressa é entendido como uma flagrante violação do seu estatuto, da sua pessoal maneira de se situarem perante um determinado assunto, da sua liberdade pessoal. 

A religião é um dos domínios onde se ouve dizer que “não se brinca com coisas sérias”. Talvez este texto (e o seu autor) não arrisque assim tanto: o texto não é sobre o catolicismo imerso num estatuto ambíguo, entalado entre o legalismo da laicidade e os ainda usos enraizados que lhe imputam o estatuto de religião oficial, muito embora não o seja pelas leis da república. Este texto é sobre o Dalai Lama que, em idade idosa e pressentindo o fim da sua vida terrena, veio anunciar que está preparado para o processo da (sua) reincarnação.

O texto não é covarde por saber que há poucos seguidores do budismo entre nós. Aliás, o texto poderá ser uma sátira ao aviso de receção da reincarnação do Dalai Lama, mas nunca porá em causa o respeito por aqueles que são seus seguidores. A sátira não agride, a menos que os seguidores ou simpatizantes da pessoa ou da causa satirizada gritem as dores de parto e tresleiam o significado de uma simples sátira. A esta advertência soma-se outra: a sátira ensaiada é-o por boas razões que não desmerecem o alvo da sátira: o(a) leitor(a) irá perceber que a sátira é motivada por uma causa nobre.

Quando li que o Dalai Lama vai reincarnar, exultei. (Não me interessa que a União Europeia não aceite que a China interfira no processo, pois essas questões transcendentais ultrapassam a esfera de influência dos poderes terrenos, mesmo que diga respeito à toda-poderosa China.) Eu, que tanto amo a vida e tenho medo da morte, vi no anúncio do Dalai Lama uma possibilidade para prolongar a existência depois de o corpo se apagar. Eis um dos malefícios do agnosticismo: limitando as expetativas de vida à sua correspondência terrena, a morte é assustadora, um vazio tenebroso – o medo maior (esta é a pessoal manifestação de autêntico otimista existencial).

Ao saber que o Dalai Lama vai reincarnar, consegui apaziguar o medo da morte. Por ser tanto ao amor à vida, e por tanto a querer viver, quero acreditar que se o Dalai Lama vai reencarnar essa possibilidade também me será conferida. Assim manda o princípio da igualdade; e o Dalai Lama será tão de carne e osso como eu. Admito que este lampejo de esperança assente no cimento do oportunismo. Hoje, quando me deitar à espera do sono, espero que seja mediado por um sono idílico, confirmativo da futura reincarnação. Por via de dúvidas, continuo à espera que esta confirmação esteja aprazada para daqui a muito tempo, porque, assim como assim, prefiro a certeza da vida tangível à incógnita de uma reincarnação póstuma. Pois a vida é a causa mais nobre a que os vivos se devem dedicar.

Amanhã mando notícias sobre o sonho que me calhou em sorte e as probabilidades de reincarnação.

3.7.25

O arnês desapertado

Idles, “Beachland Ballroom” (live From the Basement), in https://www.youtube.com/watch?v=caeOaPDgNwE

O arnês é obrigatório. Depressa militam os favores da segurança, só para lembrar às pessoas, caso estejam esquecidas, que as vidas são incalculáveis. As forças que se congeminam atiram os corpos de um lado para o outro. Eles ficam à mercê da força da gravidade. Podiam ser cuspidos para longe, caso o equipamento não estivesse servido de arneses.

É para escorraçar o lamento das perdas de vidas que os arneses são imperativos. Ao contrário dos argumentos dos pessimistas, as pessoas sabem avaliar os riscos que correm quando se propõem a uma certa empreitada. Se intuírem que a vida corre riscos, agarram-se aos dispositivos de segurança que limitam esses riscos. Aprenderam a acautelar a sua vida com as campanhas de vacinação que erradicaram doenças que levavam vidas prematuramente. Aprenderam a segurar pessoas e bens para não ficarem à mercê de contingências. Aprenderam a apertar o cinto de segurança mal entram num automóvel. Aprenderam a usar capacete se circulam em motociclos. No circo, os trapezistas aprenderam a não cometer a loucura de desapertarem dos arneses. Aprenderam a usar contracetivos para controlar o crescimento da população (e agora estão arrependidas). Aprenderam a não fumar em restaurantes e outros lugares sem acesso ao exterior, para defesa da sua integridade física.

Mas há sempre dissidentes. Gente que preza ser diferente da maioria. Ou gente que desafia as proibições e as imposições e age em sentido contrário, fazendo o que é impedido ou escolhendo a omissão quando tinham um dever de ação. Ou ainda gente que, desafiando as convicções dos mais otimistas, desconhecem a informação que os levaria a ter cautela e a proteger vidas e haveres contra a maldição do inesperado.

O espetáculo das exceções pede meças ao muro onde as lamentações depois surgem como uma contradição de termos. No circo, um dos homens que conduz as motoretas no poço da morte finge que se esqueceu de apertar o arnês. A certa altura, saiu disparado da motoreta. Parecia o homem-bala.

2.7.25

Soberba

Elbow, “Balu” (Live at Later...With Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=dyjmgGs95Go

Da carniça putrefacta não havia interessados. Nem os exímios caçadores sondavam a carcaça desinspirada; eles tinham outro paradeiro, onde o bafo letal estava de atalaia. Nem assim prescindiam da pose de quem nadava numa piscina olímpica de soberba. Era inato: os compêndios que organizam as forças da natureza colocam-nos como predadores, esse era o estatuto que os investia numa superioridade gravada com a solenidade do ouro simbólico.

A soberba era estrutural, mesmo que a fome, não habitual, passasse as folhas do calendário e adejasse sobre os consecutivos dias sem presas à mão de semear. A saliva sabia-lhes mal enquanto estava na boca – sabia à falta do ato sacramental de que dependia a sua sobrevivência, a estocada fatal que derrubava as vítimas para estas se debaterem no seu estertor enquanto as mandíbulas com a força de aço seccionavam a glote do animal só à espera de se tornar num banquete.

Há quem não consiga ser testemunha deste ato que exerce as condições da natureza. Eu escondo o olhar atrás dos dedos enquanto a coreografia da caça se monta numa liça empoeirada nas corridas desenfreadas que dão corpo à perseguição. Talvez seja das maiores hipocrisias de que somos fautores. Uma hipocrisia que fica só dois degraus abaixo daquela em que nos debatemos quando fingimos que não sabemos a origem da carne ou do peixe que vem parar aos nossos pratos.

Não devemos temer pela hipocrisia. Só se quisermos desmentir os processos da natureza e nos queiramos substituir, numa justiça muito frágil (porque intensamente subjetiva), ao sortilégio que lhe é próprio. Se for incorrigível essa teima, não nos defendemos da acusação de soberba. Não podemos aceitar um comportamento que se impõe sobre os outros se imaginarmos o inverso e, com legitimidade, recusarmos essa invasão.

Somos, como espécie, a nossa maior concorrência. Cometemos atrocidades que evoluem num cenário mais dantesco do que a coreografia de vida e da morte quando o caçador e a presa entram no seu palco inevitável. Pior do que a soberba dos que estão em classes privilegiadas na ordem dos predadores, só a nossa soberba de quem se enfatua com o estatuto antropocêntrico.

1.7.25

O gestor pós-pós-moderno

 

Entrevistado no caderno de economia de um semanário de grande tiragem, o gestor (CEO está mais na moda), apresentado como o criador de uma startup de sucesso, dá-se à fotografia numa pose descontraída, vestindo uma simples t-shirt e uns jeans descomplexados, com o portátil Mac sentado no colo, ele por sua vez sentado no sofá do que aparenta ser a sala de casa. Descalço. Numa muito nórdica pose de descontração e, porque não dizê-lo, de higiene – ao contrário dos ogres do Sul da Europa que andam calçados em casa, empestando o chão com todo um azar de bactérias e afins importados das ruas conspurcadas. 

O pormenor que se destaca são os pés nus do CEO muito moderno. Se a memória não me atraiçoa, é a primeira vez que leio a entrevista de um promissor (ou não) gestor em que o entrevistado se dá a conhecer de pés descalços. Como acontece com a classe política, também a pose diz tudo e mais alguma coisa nos gestores que ganham os seus cinco minutos de fama numa entrevista a um jornal de grande circulação. A pose é estudada ao milímetro. 

No caso deste CEO, que é oferecido aos leitores como uma das poucas Coca-Colas do deserto, dar-se à fotografia com os pés à mostra não terá sido um acaso. Já todos sabemos um pouco dos novos paradigmas da gestão, com os seus métodos vanguardistas que condenam as grandes empresas a serem velhas peças de museu. Desses paradigmas que falam um idioma próprio que abusa de termos em inglês quando as suas traduções estão disponíveis no idioma nativo corrente, dando preferência ao trabalho remoto (daí o promissor, jovem CEO ter sido fotografado na sala lá de casa). E já sabemos que estes arrivistas fazem questão de deixar uma marca distintiva que passa pela criatividade que não pode deixar ninguém indiferente (por bons ou maus motivos).

Para vingarem no competitivo mundo em que estão, devem fazer diferente e serem diferentes, para não serem confundidos na imensa amálgama em que nenhum passa da cepa torta. Os fatores distintivos devem ser (palavra da moda na gramática da gestão) disruptivos. Traduzindo para um idioma corrente: devem chamar a atenção da audiência pela originalidade da mensagem e, sobretudo, pela pose estudada. A originalidade, num lugar cada vez mais competitivo e que alarga a base da homogeneidade, é um desafio muito exigente. 

Quando cheguei à página da entrevista, o que despertou a atenção foram os pés descalços do gestor. Modernaço. Relaxado. Espírito aberto – era lá capaz de me entregar a uma fotografia, no contexto de uma entrevista profissional, aparecendo a mostrar os pés, foi a minha reação de incorrigível bota-de-elástico. 

A pose toda estudada não escondia nada, tanto que até os pés descalços foram diligentemente empurrados para a frente da fotografia que ilustrava a entrevista. Logo a seguir, lembrei-me de alguns músicos que sobem a palco descalços. Um deles, em resposta à jornalista que perguntou se era um ritual, disse tratar-se da absorção da energia que o palco e a audiência de um concerto transmitem. Não parece que seja o caso da pose muito estudada do gestor pós-pós-moderno. Os clichés são sintomáticos do vazio restante. Quem muito quer mostrar um atributo que se resume à imagem exteriorizada, precisa de encontrar um subterfúgio para disfarçar a frivolidade da mensagem. 

É isto, ou então, apenas, a minha irritação pelos pés à mostra que entronca num preconceito pessoal de quem tem nos pés a parte mais inestética do corpo humano. Pode-se-lhe chamar um anti-fétiche com pés. O gestor modernaço não tem culpa dos meus preconceitos.