17.7.25

Corria os dias em forma de apenso

PJ Harvey, “Dress”, in https://www.youtube.com/watch?v=ah9NdBKkEQY

Desde que ouvira que não é ninguém, e isso fora dito por outro, como ele, zé-ninguém, nunca mais teve insónias. A imaturidade de outrora desassossegava-o, ateava um fogo estrénuo de quem tinha para si grandes planos e de si uma tremenda imagem de quem se situava no centro do mundo e haveria de ser, pelo menos, credor da toponímia da cidade onde nascera (ou de outra qualquer, também servia).

Ouvir dizer, em jeito de terrível sentença, próprio de quem cai nua amargura insidiosa depois de a ouvir, que era irrelevante para o resto do mundo e, para os mais chegados, apenas um pouco mais do que isso, teve um efeito sísmico. Era um bom efeito sísmico: nunca mais voltou a olhar no espelho e a consagrar à sua idealizada grandeza estrofes do que poderiam ser poemas homéricos em seu honra. Os sonos passaram a ser dignos de um santuário de serenidade, deixou de ser acossado pela insónia e, o que era pior, por pesadelos medonhos.

Agora estava em paz. Concedia: ele não era ninguém, e só era alguém ao pé de uma multidão de ninguéns, porque todos seriam reduzidos à insignificância se ambicionassem privilégios que só habitavam nos melhores sonhos. Já não tinha dores de cabeça causadas pela tarefa volumosa de ser alguém na vida, como o advertira um tio no auge da adolescência. Reduzido à insignificância profetizada por um tão insignificante como ele, averbou as credenciais da paz interior e nunca mais se quis desapossar delas. Desaprendeu a angústia.

Dantes é que a grandeza alimentava ilusões disfarçadas de sonhos. Agora sabia o que fora viver desse jeito: um chão sempre pantanoso, habitando por pessoas peritas em fingir, pessoas dissimuladas que se enredava em palimpsestos de mentira, a mentira habilitada por sucessivas mentiras que transfiguraram a verdade em palavra morta.

Assumiu que era apenas uma nota de rodapé que atravessava os dias com a mesma indiferença com que eles testemunhavam a sua existência. Agora sabia que todos são matéria apensa a um tremendo vazio que trespassa os dias que assentam em alicerces de filigrana. Os anjos eram espectros hauridos pela displicência. Os deuses tinham pedido a demissão (muito embora, não tendo superiores hierárquicos, ainda esteja por desvendar a quem dirigiram as cartas de demissão). Os alucinados que se vangloriavam como espécimes únicos, convencidos que eram credores das genuflexões dos simples mortais, erravam ao acaso, maltrapilhos, angustiados por falta de confirmação das suas ambições. As sereias nunca mais voltaram a submergir. Aprenderam a imitar os peixes. 

E ele aceitou que não passava de um apenso de um todo todavia incapaz de identificar.

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