Deftones, “My Mind Is a Mountain”, in https://www.youtube.com/watch?v=cgh_jEm5twE
(Aviso: contém linguagem eventualmente chocante para leitores mais sensíveis)
O meu killer instinct é prosaico: umas cebolas apodrecidas, entretanto olvidadas em seu ninho, transformaram-se no habitat ideal para um bando de mosquitos que prosperou enquanto não dei conta da colónia residente. Descoberta a sua existência, não parei enquanto não extingui, um a um, os mosquitos. Alguns deles, gordos que até deixavam um rasto de sangue depois de esborrachados pela minha mão, exibiam a prova do crime: aquele sangue era meu.
Desconheço o que será pior: se este genocídio dos mosquitos que medram na merda em que se transformam cebolas apodrecidas, se encomendar o mundo a uma prática que ora significa prazer, ora corresponde a alguma violência. Sim, o “mundo que se foda”, em inglês que é menos ofensivo para os ouvidos (e as sensibilidades) sensíveis, passe a redundância. Um músico veterano (Victor Torpedo), que voltou a gravar um disco há pouco tempo, exibindo prova de vida, disse-o em inglês: “fuck the world”. Considero que, para desagravo das armadilhas constantes que o mundo mete no nosso caminho, podia-se encomendar o mundo para outra função, que o sexo, tirando comportamentos abjetos (sexo contra a vontade de um dos intervenientes), é uma função nobre.
É muito diferente se se disser “vou-te foder” – ou, regressando ao tema do pessimismo antropológico, tão pessimista que a desforra implica a condenação do mundo inteiro ao sexo por via de um “que se foda”. A formulação encerra uma diferença que faz toda a diferença. “Que se foda” é impessoal, determina, na significação da linguagem codificada da expressão, um desinteresse pelo fado de alguém ou de algo. Se dizemos, como Victor Torpedo, “que se foda o mundo”, estamos a sair da carruagem e a deixar de dar o nosso contributo, por modesto que seja, para influenciar o curso do mundo. Quem se demite desta responsabilidade destina o mundo a esta função, com toda a impessoalidade inerente a quem proclama “que se foda”, pois não interessa o “com quem” da função. É mais para o onanista (o que não deixa de ser sexo).
Pelo contrário, “vou-te foder” é personificado. Tem um sujeito que é o destinatário e outro que é o promitente. Para gáudio dos melancólicos que desconfiam que o mundo inteiro conspira contra eles, a expressão tem o sentido de uma ameaça e pode corresponder a um equívoco. Para a última hipótese concorre a possibilidade de o destinatário não se importar de colaborar na função pelo prazer que estima conseguir, o que esvazia a expressão idiomática de significado (se o seu significado metafórico for o correspondente ao “vou-te foder” como promessa de materialização de um mal).
(Já para não especular sobre as ramificações da ameaça que, se for levada pelo sentido meramente literal da expressão, pode colidir com interesses de terceiros, nomeadamente se estiver em causa a transgressão da monogamia, que, por sua vez, se pode desmultiplicar em diversos atores e com variadas consequências. É uma autêntica caixa de Pandora.)
Sugiro mais cuidado na utilização das palavras. É como o fascismo, tão banalizado como expressão do mal e como abjuração dos oponentes de ideias, que começa a perder significado. Em vez de se mandar foder alguém, ou em vez de condenar tudo e todos, impessoalmente, a um “que se foda”, traduzam-se estas expressões por aquilo que significam. O sexo não é uma ameaça, a menos que coincida com os desvios que bulem com o consentimento de uma das partes.
Que não se maltrate o sexo como eu maltrato a colónia de mosquitos que já tinha colonizado o ninho de cebolas. O sexo não pode corresponder a um killer instinct.
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