14.7.25

Submergir a manhã

Fontaines D.C., “Just Like Heaven” (live at Jameson Unplugged), in https://www.youtube.com/watch?v=kzRlLRvoAig

Não esqueças o escafandro. Submersa a manhã, não te percas nas funduras onde se esconde o tesouro que a manhã não quer revelado. Nadarás nessas águas modestamente profícuas – não levantes as esperanças se não sabes de que linhagem são feitas essas águas.

Sabes que enquanto estiveres submerso na manhã, ninguém dá conta das tuas lágrimas. Ninguém notaria; não vês vivalma enquanto esquadrinhas a manhã submersa, parece que só tu a habitas e nem assim podes dizer que a manhã te pertence. 

Não insinuas que a manhã devia ter um intermediário. Por ser inaugural e despontar as pessoas do adormecimento noturno, a manhã tem vontade própria que não é corruptível ou permeável ao exercício de influência de quem a frequenta. À submersa manhã depões-te como um vassalo. Ela dir-te-á que curvas atravessam o dia.

Não ouses desafiar a manhã. Ela pode deitar sobe ti uma maré iracunda e nem o escafandro te salvará. Mas não precisas de ter medo da manhã assim congeminada. Ela é como certos animais selvagens: só se insubordina contra as pessoas quando se sente ameaçada por elas. Por isso, a manhã odeia boémios.

Nas tuas habituais digressões submarinas, já conheceste manhã diferentes. Há as manhãs baças, com as suas águas túrbidas que não deixam nada à mostra; há as manhãs claras, com as suas águas translúcidas como se fossem retiradas de um atol; há as manhãs agitadas, os ventos matinais a descomporem as águas que ficam agitadas nas profundezas, as correntes erráticas empurrando o corpo de um lado para o outro; e as manhã indiferentes, próprias das águas temperadas que acontecem na maior parte do tempo. 

Um dia, descobriste um tesouro escondido num recanto da manhã que estava ainda submersa. Perguntaste à tutora da manhã o que acontece ao tesouro quando a manhã se liberta das águas fundacionais. Ninguém te respondeu. Confirmaste que o lugar onde viste o tesouro parecia diferente quando a manhã se libertava das águas inaugurais – e o tesouro não estava lá. No dia seguinte, deste com o paradeiro do tesouro, que estava outra vez no mesmo lugar.

Só muito tempo depois é que percebeste o sortilégio do tesouro. A manhã escondia-o quando a maré ficava baixa e ela se despojava aos olhares ainda estremunhados da cidade. Se o tesouro fosse revelado, poucos estariam interessados em ser precoces como a manhã. Poderiam tender a devorá-la.

Há tesouros que se perdem se forem descobertos.  

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