1.7.25

O gestor pós-pós-moderno

 

Entrevistado no caderno de economia de um semanário de grande tiragem, o gestor (CEO está mais na moda), apresentado como o criador de uma startup de sucesso, dá-se à fotografia numa pose descontraída, vestindo uma simples t-shirt e uns jeans descomplexados, com o portátil Mac sentado no colo, ele por sua vez sentado no sofá do que aparenta ser a sala de casa. Descalço. Numa muito nórdica pose de descontração e, porque não dizê-lo, de higiene – ao contrário dos ogres do Sul da Europa que andam calçados em casa, empestando o chão com todo um azar de bactérias e afins importados das ruas conspurcadas. 

O pormenor que se destaca são os pés nus do CEO muito moderno. Se a memória não me atraiçoa, é a primeira vez que leio a entrevista de um promissor (ou não) gestor em que o entrevistado se dá a conhecer de pés descalços. Como acontece com a classe política, também a pose diz tudo e mais alguma coisa nos gestores que ganham os seus cinco minutos de fama numa entrevista a um jornal de grande circulação. A pose é estudada ao milímetro. 

No caso deste CEO, que é oferecido aos leitores como uma das poucas Coca-Colas do deserto, dar-se à fotografia com os pés à mostra não terá sido um acaso. Já todos sabemos um pouco dos novos paradigmas da gestão, com os seus métodos vanguardistas que condenam as grandes empresas a serem velhas peças de museu. Desses paradigmas que falam um idioma próprio que abusa de termos em inglês quando as suas traduções estão disponíveis no idioma nativo corrente, dando preferência ao trabalho remoto (daí o promissor, jovem CEO ter sido fotografado na sala lá de casa). E já sabemos que estes arrivistas fazem questão de deixar uma marca distintiva que passa pela criatividade que não pode deixar ninguém indiferente (por bons ou maus motivos).

Para vingarem no competitivo mundo em que estão, devem fazer diferente e serem diferentes, para não serem confundidos na imensa amálgama em que nenhum passa da cepa torta. Os fatores distintivos devem ser (palavra da moda na gramática da gestão) disruptivos. Traduzindo para um idioma corrente: devem chamar a atenção da audiência pela originalidade da mensagem e, sobretudo, pela pose estudada. A originalidade, num lugar cada vez mais competitivo e que alarga a base da homogeneidade, é um desafio muito exigente. 

Quando cheguei à página da entrevista, o que despertou a atenção foram os pés descalços do gestor. Modernaço. Relaxado. Espírito aberto – era lá capaz de me entregar a uma fotografia, no contexto de uma entrevista profissional, aparecendo a mostrar os pés, foi a minha reação de incorrigível bota-de-elástico. 

A pose toda estudada não escondia nada, tanto que até os pés descalços foram diligentemente empurrados para a frente da fotografia que ilustrava a entrevista. Logo a seguir, lembrei-me de alguns músicos que sobem a palco descalços. Um deles, em resposta à jornalista que perguntou se era um ritual, disse tratar-se da absorção da energia que o palco e a audiência de um concerto transmitem. Não parece que seja o caso da pose muito estudada do gestor pós-pós-moderno. Os clichés são sintomáticos do vazio restante. Quem muito quer mostrar um atributo que se resume à imagem exteriorizada, precisa de encontrar um subterfúgio para disfarçar a frivolidade da mensagem. 

É isto, ou então, apenas, a minha irritação pelos pés à mostra que entronca num preconceito pessoal de quem tem nos pés a parte mais inestética do corpo humano. Pode-se-lhe chamar um anti-fétiche com pés. O gestor modernaço não tem culpa dos meus preconceitos.

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