30.7.25

Os pecados dos outros são piores do que os meus (porque os meus escondo-os bem escondidinhos)

Deftones, “Back to School”, in https://www.youtube.com/watch?v=1gxZIL4zpIQ

Deu brado um caso de adultério descoberto durante um concerto de uma banda pop muito conhecida. Num apanhado do ecrã que transmitia o concerto em direto, para os espetadores poderem ver o que se passa – às vezes, está-se tão longe do palco que só se consegue acompanhar o concerto através das imagens reproduzidas nos ecrãs gigantes –, num time frame, o realizador apanhou um casal em pose de enamoramento. 

Descobriu-se, pouco tempo depois, que o homem era um importante gestor de uma importante empresa tecnológica e a mulher dirigia os recursos humanos da mesma empresa. Nada de anormal. A malta, sobretudo a que gosta do género “comédia romântica”, embeiça-se facilmente pela pose de um par de apaixonados. O verniz estalou quando as identidades do casal foram reveladas. Descobriu-se que, afinal, não eram um casal com a devida bênção das convenções sociais. Ou melhor: cada um era casal com outra pessoa que não tinha comprado bilhete para o concerto. Estalou o verniz porque estavam a cometer adultério em direto. 

As hienas do costume, zelosamente apascentando os bons costumes (e o adultério é um mau costume), logo saltaram para a praça pública destilando superioridade moral e criticando o casal, que afinal não o era (pelo menos aos olhos destas hienas), só faltando o apedrejamento público para exprobrar o pecado que passou à frente dos olhos de uma multidão e em direto – e depois foi reproduzido numa multiplicação sem fim. Munidos de uma lança ungida pela superioridade moral de quem se autoatribui o direito de julgar os outros pelos seus comportamentos, evacuaram o azedume segregado pelas suas mal-amanhadas, desinteressantes vidas (isto é produto da minha especulação) para zurzirem no homem e na mulher que foram apanhados em “flagrante delito”. Que vergonha: o adultério à vista desarmada.

(Termos em que é legítima a pergunta: se o adultério não tiver testemunhas, não existe? As pessoas que admoestam o adultério alheio atuam como a consciência dos adúlteros?)

Para piorar o infausto episódio (infausto devido às proporções que tomou, fenómeno ao qual os “adúlteros” foram alheios), algumas opiniões que criticaram os críticos levaram por tabela: deitando as mãos ao céu, eventualmente em demanda de caução divina (que tomam por implicitamente consensualizada, atendendo ao muito oportuno silêncio divino), deitaram-se ferozmente aos seus críticos, devolvendo a crítica em dobro e com particular veemência. Só faltou insinuar que quem condescendia com o adultério em direto exercitava as suas dores de consciência, possivelmente por já terem cometido, com regularidade ou episodicamente, adultério. Para gáudio dos julgadores de plantão, exportaram o julgamento do casal sob os holofotes da vergonha em pleno concerto para todos os outros que se insurgiram contra a sua lapidação pública.

Este é um tempo e um lugar em que o desporto favorito de uns quantos é adiantar palpites sobre as vidas dos outros. Sobretudo quando há comportamentos, palavras ou até omissões que os colocam sob a égide do bastão da moral convencionada e sob o escrutínio de gente que se autoconsidera empossada de um direito especial de julgar e, se necessário for, de punir os comportamentos, palavras e até omissões que se desviem dos cânones de que são zeladores.

Como continuo a acreditar que em momentos excecionais é preciso chocar as consciências, desafiando-as a um teste interno de coerência, apeteceria (se não fosse critério meu o da indiferença perante a vida das outras pessoas) esquadrinhar os meandros das vidas dos justicialistas da moral e dos bons costumes e finalizar com uma interrogação: quantos deles nunca deram a sua facadinha na tão, por eles apregoada, sagrada fidelidade conjugal? Sendo-me indiferente às outras vidas, e não tendo propensão para teorias conspirativas, seria levado a apostar num escrutínio surpreendente (ou, no fundo, talvez não...), no apuramento da percentagem dos juízes da moral que, afinal, não têm nenhuma moral para julgar a moral dos outros, a crer pelas suas fracas credenciais, tão fracas quanto a carne própria. Ou seja: os que se levantaram contra os adúlteros (note-se: não foi a favor das vítimas deste adultério) serão, em muitos casos, os primeiros a exibir um cadastro não recomendável quanto ao exercício do adultério.

Mas, para o caso, isso nem interessa – a não ser pela revelação da incoerência de muitos dos juízes, que automaticamente os inabilita para a função a que se autopromoveram. O que importa é essa tendência execrável de olharmos de mais para as vidas dos outros e salivarmos de indignação quando, em certas circunstâncias, eles e elas desviaram da moral padronizada. Desconfio que quem assim procede tem vidinhas desinteressantes e uma irreprimível vontade de contribuir para o princípio geral da poligamia. O resto fica por conta da inveja.

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