Siouxsie and the Banshees, “Israel” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=EYJOq6VnV2U
1. O licor de merda, que se fabrica em Cantanhede, não é feito com materiais escatológicos e tem o nome que tem – não há memória que o uso da palavra “merda” seja qualificativo do licor, como se os primeiros provadores da mistela tivessem torcido o nariz por ter um sabor desagradável, pese embora as gerações futuras terem desmentido a proclamação e, mesmo assim, a tradição de o beber se tenha mantido assim como o seu nome.
2. Na infância, o Tó Gordo fazia parte do núcleo de amigos. Era magro que nem um espeto. Nenhum de nós escapava a alcunhas e como tínhamos desenvolvido um espírito de contradição incontroverso – as alcunhas não eram abjuradas por ninguém –, encontrávamos alcunhas que retratassem o que as pessoas não eram. Como o Tó era muito magro, nós, os do incontroverso espírito de contradição, inventámos uma alcunha que era a antítese da massa corporal do Tó.
(O Adriano escapou a este jogo de espelhos que consistia em arranjar um qualificativo, ou um nome evocativo, que fosse o contrário da pessoa sujeita à alcunha. O Adriano era ainda mais magro, tão franzino, tão franzino que só nos lembrámos de o alcunhar o “pulga”, não sendo, todavia, alheio o facto de o Adriano ser o mais irrequieto de todos nós.)
3. Por estes dias, há um ex-político e ex-primeiro-ministro que está a ser julgado por inúmeros crimes que não são abonatórios de si mesmo. Em tempos, por interpostos procuradores, arranjaram-lhe o cognome de “animal político”. As vozes comuns acabaram a tresler o proclamado: aceitaram-no como “animal político”, banalizaram-no enquanto tal como modo de afirmar a sua autoridade e a obstinação pelas certezas incontestáveis de que era portador, assim como a forma contundente com que enfrentava e derrotava os adversários. Esqueceram-se que os animais, quando assim são tratados, são os animais que estão no oposto dos humanos. A falta de racionalidade explica muito do interminável episódio.
4. Em Lisboa, há um cemitério dos prazeres. Aproveitei o nome do cemitério para refletir demoradamente sobre a morte. Ou se atesta que a morte nos transporta para uma dimensão de prazeres que não conhecemos na vida terrena, muito a aproximando da promessa de setenta virgens celestiais aos mártires pela causa do Corão (de acordo com os seus exegetas fundamentalistas, que não se desprendem de um viés de género), ou somos subtilmente convencidos que a morte não é o apocalipse, pois ninguém se lembraria de ligar prazeres (contudo inomináveis) à morte que por sua vez os liga ao nome de um cemitério.
(Afinal, o bolo de arroz leva farinha de arroz. Acabei de o confirmar na receita. O que deita por terra toda a teoria deste texto.)
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