29.7.25

Interpelação ao diário

Jeff Buckley, “Last Goodbye” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=aRrKUtYgzDU

Temos um diário de bordo, mas quase todos não sabemos. Dirão: fica por conta da memória, que assenta nas memórias que desfilam numa sucessão veloz de telas mentais. 

Podemos interpelar o diário sobre o passado: para um avivar da memória sobre memórias de tempos de antanho; para a confirmação de um acontecimento e da correspondente data; para a contextualização de um tempo e dos comportamentos respetivos; para a ajuda na interpretação de um episódio, de uma reação, das palavras ditas ou escritas, por voz própria ou por vozes outras. 

Também podemos interpelar o diário sobre o futuro. Se circularmos pelo exterior das ciências, é puramente indagativo. Um processo normal, mas talvez patológico, de querer romper com as teias da incerteza quando olhamos de frente para algo que sabemos existir (a menos que a morte malogre os planos), mas que desconhecemos como vai existir. O processo contorna a única realidade temporal tangível, o presente. Dos três tempos existentes, é o que menos interessa ao escrutínio. Porque mergulhamos de mais no passado, tanto que às vezes parece que estamos aprisionados a esse tempo e não chegamos a nascer para o tempo presente. Ou porque nos interessa muito levantar a ponta do véu sobre o porvir, mesmo que tenhamos aprendido sobre a impossibilidade dos oráculos, que depressa são desmentidos quando o presente se converte em futuro.

A sofreguidão em pressentir o futuro é equivalente à náusea do presente. Fugimos do hoje por temermos que não seja fonte de bem-estar. Passamos pelo presente como se o presente não tivesse acontecido. No grande salto em frente que é a passagem direta do passado ao futuro, fica quase tudo por cumprir. Toda aquela parte do tempo presente em vertiginosas digressões pelo futuro por existir. E toda a outra parte do tempo que fica gasta à custa da nostalgia (nas suas possíveis declinações). 

Quando a soma do passado com o futuro é um cardinal negativo, o presente foi trespassado. Soma-se passado sem ter o crédito do presente. A entrada no futuro já é feita em défice. Outras vezes, descontam-se do presente as quimeras por conta do futuro. O presente é sacrificado em nome do futuro e fica menos passado por contar. 

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