2.7.25

Soberba

Elbow, “Balu” (Live at Later...With Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=dyjmgGs95Go

Da carniça putrefacta não havia interessados. Nem os exímios caçadores sondavam a carcaça desinspirada; eles tinham outro paradeiro, onde o bafo letal estava de atalaia. Nem assim prescindiam da pose de quem nadava numa piscina olímpica de soberba. Era inato: os compêndios que organizam as forças da natureza colocam-nos como predadores, esse era o estatuto que os investia numa superioridade gravada com a solenidade do ouro simbólico.

A soberba era estrutural, mesmo que a fome, não habitual, passasse as folhas do calendário e adejasse sobre os consecutivos dias sem presas à mão de semear. A saliva sabia-lhes mal enquanto estava na boca – sabia à falta do ato sacramental de que dependia a sua sobrevivência, a estocada fatal que derrubava as vítimas para estas se debaterem no seu estertor enquanto as mandíbulas com a força de aço seccionavam a glote do animal só à espera de se tornar num banquete.

Há quem não consiga ser testemunha deste ato que exerce as condições da natureza. Eu escondo o olhar atrás dos dedos enquanto a coreografia da caça se monta numa liça empoeirada nas corridas desenfreadas que dão corpo à perseguição. Talvez seja das maiores hipocrisias de que somos fautores. Uma hipocrisia que fica só dois degraus abaixo daquela em que nos debatemos quando fingimos que não sabemos a origem da carne ou do peixe que vem parar aos nossos pratos.

Não devemos temer pela hipocrisia. Só se quisermos desmentir os processos da natureza e nos queiramos substituir, numa justiça muito frágil (porque intensamente subjetiva), ao sortilégio que lhe é próprio. Se for incorrigível essa teima, não nos defendemos da acusação de soberba. Não podemos aceitar um comportamento que se impõe sobre os outros se imaginarmos o inverso e, com legitimidade, recusarmos essa invasão.

Somos, como espécie, a nossa maior concorrência. Cometemos atrocidades que evoluem num cenário mais dantesco do que a coreografia de vida e da morte quando o caçador e a presa entram no seu palco inevitável. Pior do que a soberba dos que estão em classes privilegiadas na ordem dos predadores, só a nossa soberba de quem se enfatua com o estatuto antropocêntrico.

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