O tempo que queriam privatizar era o tempo cronológico. As coisas mudavam de feição, assim sendo. A efemeridade do tempo pesa sobre as costas, da mesma forma que cada segundo descontado à finitude do tempo exacerba a angústia quando se confirma que a perenidade é uma ilusão. O tempo é escasso – e não há pior lugar-comum para tirar a fotografia da apoplexia que se abate sobre quem vive cercado pela sensação de que o tempo rareia para tantas empreitadas que na vida ficarão por saldar.
O tempo foi, desde sempre, um mal nacionalizado – e aqui “mal” aparece como antónimo de “bem”, figurando o “bem” no sentido que os economistas costumam empregar. Como mal nacionalizado, o tempo não só é a circunstância que toma conta de nós, como também é a contingência que nos acondiciona a uma passividade irremediável. O tempo corre por sua conta, indiferente a todos que dele dependemos. Um tempo assim congeminado é das piores tiranias que se impõem às pessoas.
Que avance, pois, o abaixo-assinado pela privatização do tempo. Uma utopia acabada, com os contornos de um sonho que entra na geografia da fantasia. A cada momento, ser-nos-ia destinado cuidar do tempo. Algumas vezes, poderíamos acelerá-lo. Outras vezes, abrandaríamos a sua impertinente cavalgada, quando a efemeridade do tempo, que se consome num instante, esgotasse os prazeres a que podemos meter as mãos. Como se a cada um estivesse destinado um relógio pessoal (e não estará?) e esse relógio não fosse comandado pelo tempo tirano, o tempo que manda em si mesmo e no relógio que o mede, mas por cada pessoa que passaria a tutelá-lo.
O tempo privatizado seria a maior oferta de liberdade individual. Dir-se-ia, a consumação quase plena da liberdade. Andaríamos todos sob os auspícios de relógios diferentes. Provavelmente, haveria meses mais demorados para uns, anos encurtados para outros, e até muitos a quem a privatização do tempo seria indiferente e, portanto, continuariam afinados pelas convenções oficiais do tempo. Privatizar o tempo seria acabar com uma das piores tiranias que compõem a História da humanidade.
Contem comigo para a petição a reivindicar a privatização do tempo. Contem comigo para comícios apaixonados que mobilizem os apaniguados da privatização do tempo. Contem comigo para tudo o que ditar a emancipação de algemas, reais ou imaginadas, que limitam a autonomia do ser. Contem comigo para estilhaçar a mordaça do tempo, pois há sempre tanta vida que fica por viver e a culpa é sempre da efemeridade do tempo. E o tempo só é efémero porque foi nacionalizado desde o úbere da humanidade.
Contem comigo para contar o tempo pela minha medida.
Corrias por tua conta. Colhias no orvalho invernal a fonte que ajudava a matar a sede do tempo incógnito. Corrias por tua conta e não querias que mais ninguém corresse por ti. Amanhecias no sopro de dezembro, sentias aquele frio que se embebe nos ossos e, todavia, consagra o inverno precoce. Não figuras entre o numeroso exército que é capaz de organizar preces para apressar o inverno.
Um dia soubeste que queriam privatizar o tempo. Nem quiseste saber de outros pormenores. Mesmo a tua objeção metódica à posse pública das coisas (eras conhecido por defender em público a privatização de muitas coisas detidas pelo Estado) não foi suficiente para dares a mão aos promotores de uma ideia tão desconchavada. Temias que a voz dominante, aquela que se insurge contra o outono e o inverno e colonizou o idioma e os usos por fazerem corresponder o tempo dominante ao “mau tempo”, fosse capaz de reduzir o tempo outonal e a invernia a estações minimalistas. Temias que os que queriam privatizar o tempo tivessem encomendado de latitudes tropicais o tempo quente e húmido que dispensa a existência de estações. Só de pensares na hipótese já estavas a suar, mesmo que lá fora estivesse um frio pré-invernal.
Planeaste um movimento de sentido contrário. Tu, que odeias os conservadores de pacotilha que têm medo de qualquer mudança, serias ponta de lança de um movimento contra a privatização do tempo. Farias campanha a favor da perenidade das estações tal como as conhecemos. Irias mais longe: como parte integrante da contracampanha, farias circular um abaixo-assinado para rever o significado de “mau tempo”. Para se extinguir a correspondência entre a chuva e o vento e as tempestades e “mau tempo”. Os meteorologistas seriam os primeiros a serem instruídos. Estariam proibidos de pronunciar a expressão “mau tempo”.
Já mobilizavas a ausente militância de coisas públicas quando te chegou ao conhecimento que a intenção de privatizar o tempo não tinha a ver com o tempo meteorológico. Queriam privatizar o tempo, mas era o tempo cronológico. Desmontaste toda a pré-campanha que te varria o pensamento de ideias fulgurantes e começaste a pensar como haverias de reagir à ideia de que o tempo, o tempo contado pelos relógios, poderia ser sujeito a privatização.
Titus Andronicus chega triunfante a Roma. Triunfante e cansado. Já foram muitas as guerras que o general travou e viu cair em combate vinte e um dos vinte e quatro filhos, que não tem força para ser imperador. Nomeia Saturnino, que não esconde a acrimónia perante Titus antes de ser acalmado como imperador. Como seu primeiro ato, Saturnino desposa Tamora, rainha dos godos, que Titus tinha acabado de desfeitear e trazia perante os romanos como relíquia arrebatada na guerra.
Mal foi nomeado, Saturnino quis vingar-se de Titus. A rainha, que acabara de ser deposta pela guerra e reempossada pela arte do calculismo humano, teceu um enredo que iria de vingança em vingança até que as mortes de todos os vingados se acumulassem numa pira de desonra. Ela própria, um filho seu, um filho de Titus, Saturnino e até Titus perecem no apocalíptico ato final em que todas as vinganças se consumam no imenso vazio que se cola à posteridade.
A peça “Titus”, adaptação de Cátia Pinheiro, Hugo van der Ding e José Nunes de “Titus Andronicus”, de Shakespeare (em cena no Teatro Carlos Alberto), aproveita um clássico intemporal do teatro. Como intemporal que é, os encenadores quiseram mostrar que a trama explica as guerras que têm sancionado a humanidade ao longo dos séculos. O orgulho que irradia com fulgor, o prazer pérfido de impor a vingança ao inimigo, fazendo-o vergar diante de uma humilhante derrota, serve de combustível para vinganças futuras ainda mais dolorosas e humilhantes – eis o retrato que um pessimista antropológico subscreveria sem hesitar. Num esforço de adaptação ainda mais contemporânea, a peça mostra o grande vencedor da trama de intermináveis conspirações que fervilharam no desejo de vingança irreparável: o negro e mouro, escravizado no passado, que se libertou das amarras dos poderosos e conspirou nos interstícios para aproveitar a sucessão de vinganças que tiveram o seu epílogo no colapso apocalíptico dos protagonistas que ainda estavam vivos.
“Titus”, na sua aplicação moderna, também legou ensinamentos sobre o discurso de ódio. Este é um discurso motivado pelo ressentimento. Os que são acometidos pelo ressentimento medram no úbere da vingança. Querem vingar-se do passado que não foi generoso. Querem repor um passado que se julgava sepultado. Querem vingar-se daqueles que, durante muito tempo, foram as forças vivas da sociedade que instruíram a delimitação face aos proscritos. Querem vingar-se contra as bandeiras hasteadas na evisceração do conservadorismo de se constituíram procuradores. Arregimentam lealdades com base num discurso de ódio que ateia a intolerância e não quer saber dos meios desde que os fins sejam atingidos. Perante um discurso de ódio que fermenta a acrimónia e levanta pontes para a arrogância ilimitada, que reação devem ter os que não se revêem nesse discurso?
A melhor reação é condenar o discurso de ódio à surdez. Os seus fautores devem ficar a falar sozinhos, ignorando as ramificações do que é dito em público, tecendo uma censura construtiva que consiste em não dar ouvidos a manifestações que exsudem discurso de ódio. Ao contrário dos empenhados militantes que reavivam o fantasma do fascismo que se levanta da sepultura, que decretam a imperatividade de combater, com armas idênticas, os radicais que adestram o discurso de ódio.
O discurso de ódio não deve ser proibido pela democracia, para que a própria democracia não caia em estado de autonegação. Não devem ser os democratas a delimitar o discurso de ódio, impondo-lhe as fronteiras de quem, com a necessária arbitrariedade, se empossa na condição de juiz político. O discurso de ódio deve ocupar o seu lugar no palco da democracia. Prefiro agarrar-me ao otimismo antropológico para acreditar que a lucidez emergirá para restringir o discurso de ódio à tumefação que ele é. O discurso de ódio é o melhor escudo da democracia.
Podem argumentar que deixar passar em branco o discurso de ódio tem efeitos contraproducentes. Dirão que, se não forem levantadas barreiras ao discurso de ódio, ele seguirá seu caminho, desimpedido de minas que devem ser colocadas para travar a cavalgada dos radicais. Não avaliem como capitulação a medida cautelar que preconizo. Não o proponho como quem estende uma passadeira triunfal aos que deixamos a falar sozinhos. Aos soezes deixa-se o silêncio como resposta à sua desbragada retórica. Os que quiserem habitar o mesmo lugar pútrido, respondendo à letra, trocando discurso de ódio pelo criterioso amputar de Liberdade ao quererem ser juízes arbitrários das liberdades, serão tão responsáveis pela propagação do discurso de ódio quanto os autores desse discurso.
Em “Titus Andronicus”, Shakespeare ensinou que estamos destinados à vingança. Por assim ser, a lucidez obriga a não jogarmos a mesma carta dos radicais, a carta do discurso de ódio. Têm de ficar a falar sozinhos. Para exibirem o espetáculo grotesco que é o discurso de ódio. Esperando que a esperança do otimismo antropológico se cumpra, os otimistas de fora lamentando o grotesco espetáculo, percebendo por que não falam essa gramática.
Quando Titus decidiu endossar o papel de imperador a Saturnino, o menos apto para o suceder à frente do império, saberia, no seu íntimo, que Saturnino o desafiaria sordidamente por vingança contra o general que nunca o reconheceu como o candidato predileto ao trono. Titus terá previsto a sede de vingança que haveria de sufragar depois de Saturnino confirmar a certeza que Titus teve antes do tempo. Há vinganças que se arquitetam antes do tempo. Mas as vinganças devem ser banidas, independentemente do tempo em que se tecem.
Se respondermos à letra ao discurso de ódio, acabaremos submersos pelos demónios que o instruem. Ficaremos à mercê da sua vingança e da vingança de que seremos procuradores para responder à vingança precedente. Quando dermos conta, também somos instrutores do discurso de ódio. A democracia estará, então, a um passo do suicídio.
Almoço. Na mesa ao lado, dois casais de reformados. Falam de viagens. São pessoas viajadas, se a mentira não estiver a falar por eles. (Quem te manda ser desconfiado?) Episódios de aterragens difíceis voam de boca em boca. A cada episódio assustador, sucede outro ainda mais assustador. Parece um concurso de horrores passados com aterragens à força, umas, e aterragens borregadas (no jargão do meio), outras. Os homens narram-nos com o ar de quem precisa de provar a valentia – a miúda do lado desatou em prantos quando o avião, mal tocou na pista, levantou voo com toda a força, investindo contra a turbulência, “mas eu não tive medo nenhum”. As mulheres são mais contidas, fazem fé nos episódios narrados pelos consortes.
Uma das senhoras sobressalta-se: não sabe da carteira. Sonda as imediações: “tenho a certeza de que entrei no restaurante com a carteira; não pode estar longe.” A carteira repousa na cadeira à minha frente, escondida pela toalha de mesa. Pega na carteira com alívio e dirige o olhar na minha direção. Não fosse desconfiar que eu já tinha notado a presença da carteira e quisesse dar-lhe um destino ilegítimo (na perspetiva de quem deita a mão na propriedade alheia), desanuviei o ambiente:
- Vamos trocar de carteiras, para ver quem tem mais dinheiro?
- Vamos. De certeza que é o senhor, com esse ar que tem...
Não trazia ar de maltrapilho. Devia ser o ar de alguém, pelo menos, mais endinheirado do que a senhora – ou a senhora está habituada a que o marido seja o homem das finanças. Retorqui, depois de entreabrir a carteira e espreitar o pecúlio guardado (era uma nota de dez euros):
- Aposto que eu ficava a ganhar se trocássemos as carteiras.
- E os cartões, os cartões não contam?
- Não. Só contam as notas. De certeza que não quer trocar as notas que temos nas carteiras? – desafiei a senhora, como se fosse um profissional do jogo e o bluff não amedrontasse. Não sabia quantas notas a carteira da senhora agasalhava e se, caso avançássemos na troca de pertences, ficaria a ganhar ou a perder. O marido, sentado à sua frente, contestou:
- Ah, não vale! O dinheiro de plástico é mais importante do que o dinheiro contado.
A conversa foi interrompida pelo serviço que chegou à mesa dos quatro reformados. Mais tarde, já tinham sanado a fome, a senhora levantou-se para ir à casa de banho. Cruzámos olhares. E ela sentenciou, atrevidamente, falando na minha direção:
- É o senhor que paga a nossa conta.
Não reprimi uma gargalhada (coisa rara). Nada disse. O silêncio costuma corresponder a consentimento – pus-me a pensar. Como estamos a entrar no mês do Natal, e às vezes dá-me para ser exageradamente generoso em épocas que sejam à altura da generosidade, terminei a refeição antes de a senhora regressar da casa de banho e dirigi-me à caixa. Pedi a conta. Da minha mesa e da mesa ao lado, para espanto do empregado. E saí de mansinho, com um discreto “boa tarde” dirigido aos três reformados que ainda esperavam pelo café.
Depois percebi: esta generosidade foi um ato de ostentação. Tão gratuito quanto o ato normal de restringir o pagamento à mesa própria.