Tortoise, “Oganesson”, in https://www.youtube.com/watch?v=p2DZa3V5CQo
“At last I am free
I can hardly see in front of me.”
Queria ser cantor de intervenção. Antes da metamorfose, tinha de saber qual era o objeto do protesto. Não é só dizer que se é cultor da música de intervenção, é preciso nomear o objeto do protesto. Não era preciso fazer um grande esforço. A amostra do mundo lega um pecúlio suficiente para escolher os alvos do protesto.
Tinha de ser democrático na escolha dos protestos. Não podia virar-se apenas para um dos lados arregimentados na contenda social. Foi recolhendo matéria-prima para escolher, com critério judicioso, os temas sob protesto. Foi colhendo os temas invariáveis: capitalismo, empresas multinacionais, fascismo, racismo, misoginia, violência de género e sexual, minorias diversas. A verve inspirava poemas sobre esses temas. Haveriam de tornar-se, alguns deles, azimutes da contestação social. A arte tem de ser intervenção ou reduz-se à insignificância, capitulando perante as montras onde o hedonismo se oferece, lampeiro, aos interessados e aos desatentos que são vítimas do engodo.
Os poemas adstritos às músicas de intervenção eram autênticos tratados de desconstrução. Os objetos de combate eram identificados com precisão. O raciocínio discorria na lógica de denúncia das injustiças causadas pelo estado das coisas na sua tendência perene de imobilismo. Havia alguma beligerância no uso recorrente da palavra “combate”. Era, todavia, uma beligerância aceitável, a beligerância necessária para desfazer privilégios de classe e de outros estatutos que se perpetuam. O combate não era um fim, era o meio convocado para colorir as mensagens arbitradas pela música de intervenção, a sua e todo o inventário que medrou de tantas incongruências do mundo. Se havia violência, era por resposta à violência silenciosa assente na perenidade das coisas injustas.
Depois da desconstrução, a música de intervenção não conseguia assentar dois tijolos consecutivos. Não estava preparada para a construção de um algo que fosse alternativo à desconstrução que ela defendia. Ou escondia, intencionalmente, uma agenda de interesses próprios. Onde se lia “liberdade”, devia-se acrescentar “condicional”. Onde se liam arrebatados poemas de amor que consagravam a mulher, devia-se trazer à colação o marialvismo incorrigível, que, dizia-se, era produto de uma cólera geracional. Onde se traduziam epopeias que denunciavam conspirações engendradas por capitalistas impenitentes, devia-se reconhecer a deriva burguesa de quem não conseguia resistir às provocações do consumo. Onde se hasteava um aparente compasso moral, uma candeia que inspirasse os justos que não transigiam com os defeitos de fabrico do mundo, estava a tremenda incapacidade de clonar a conduta intrínseca a esse compasso moral.
Os apóstolos da música de intervenção nunca saíram das margens. Nunca foram voz ouvida pelas maiorias que decidiram eleições. E mesmo quando casos houve de rompimento com o estabelecido, trazendo para a condução das coisas alguns que se diziam tributários da música de intervenção, depressa foram devolvidos à irrelevância de que partiram. A História está ali, inamovível, para julgar os crimes, de maior ou menor extensão, que se devem aos radicais de variada extração.
A miopia da música de intervenção – soube depois, quando abandonou o registo artístico – era a de quem só conseguia olhar para os males de um lado.
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