8.1.04

Liberdade de imprensa ou direito ao bom nome dos políticos?

Continuam os estilhaços do processo Casa Pia na sociedade portuguesa. Agora as atenções dirigem-se para os efeitos das cartas anónimas que foram juntas ao processo, onde importantes personalidades da vida política nacional são implicadas na pedofilia. A reacção não se fez esperar: como nunca a classe política, aqui e ali acolitada por alguns órgãos da comunicação social, apareceu em uníssono troando em voz alta contra os “excessos da liberdade de imprensa”. Invocando o direito ao bom nome, os políticos começam, sem pudor, a equacionar a possibilidade de apertar as malhas à lei de liberdade de imprensa.
Argumenta-se que a liberdade de imprensa está a ser encaminhada para excessos que levam a espezinhar a honra das pessoas cujos nomes aparecem enlameados na praça pública. Tal sucede porque as fugas vindas de dentro do sistema judicial não param de suceder. Que existe uma conivência entre tribunais e comunicação social, ninguém parece duvidar. De outro modo o desprezo pelo vetusto segredo de justiça não seria possível. Todavia, quem será mais culpado: o jornalista sequioso de sangue jorrado dos autos que deviam permanecer em segredo de justiça, ou o funcionário judicial que se presta a fornecer informações sigilosas?
O nível da comunicação social anda pelas ruas da amargura. Os costumeiros arautos da desgraça, aqueles que convivem mal com o saudável fenómeno da concorrência, não hesitam em levantar o dedo acusatório à concorrência selvática na comunicação social. Também era bom que olhassem noutra direcção. Que vissem que é a sociedade portuguesa que, tendo caído no engodo do espectáculo degradante, procura cada vez mais este tipo de manifestações de gosto duvidoso. Seja como for, é a lei da concorrência a funcionar. E se vivemos em democracia, deve-se corresponder aos anseios da população. Afinal a democracia não é o governo em nome do povo?
A resposta a esta pergunta é recorrentemente ignorada pelos membros da classe política. Uma deputada do PSD (Assunção Esteves) não hesitou em valorizar mais a dignidade pessoal do que a liberdade de imprensa, reclamando alterações na lei da liberdade de imprensa. Reflexo da mesma postura foi a atitude do inevitável Manuel Alegre, resistente combatente que surge na linha da frente sempre que urge levantar a voz denunciando os atropelos “fascizantes” contra a democracia. Sugeriu o deputado-poeta a convocação de um Conselho de Estado para debater o que deve o Estado (leia-se, a classe política) fazer para inverter este sórdido ataque que, nas suas palavras, está a ser feito contra a “república e a democracia”. A patetice do costume.
Como se pode aceitar que a liberdade de imprensa seja sacrificada, justamente no momento em que, mal ou bem, estão ser desnudados os podres de certos membros destacados da classe política? Toca-se numa ferida pestilenta que estava escondida numa redoma e logo surgem os anticorpos corporativos que irmanam os políticos numa cruzada.
A intenção é a de preservar as regalias e imunidades, alimentar o pedestal onde se colocam à distância do cidadão comum. O instrumento passa pela limitação de uma liberdade essencial numa sociedade modernizada que se quer informada – a limitação da liberdade de imprensa. Mais fundamental ainda porque contribui para a disseminação de um direito individual – o de estar informado – de milhões de cidadãos.
O custo desta restrição à liberdade de imprensa é muito elevado para o benefício que ele pode acarretar. Não merece sacrificar a liberdade de imprensa, e por aí votar os cidadãos à escuridão informativa, só para preservar os privilégios dos políticos. Arrepiar caminho nesta direcção é colocar o país à beira de um precipício feito de falta de transparência da acção política.

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