Do fim-de-semana vem mais um episódio que alimenta um fantasma de grande parte dos portugueses: uma união ibérica, em que Portugal perderia a sua independência ao ser engolido pelo gigante espanhol.
O mote foi dado pelo Expresso (entrevista a Jorge de Mello e editorial de José António Saraiva). De tempos em tempos convém alimentar o fantasma, para cimentar a unidade nacional. À falta de causas que sedimentem o orgulho de sermos o povo que somos, a tarefa cumpre-se recordando o cenário fantasmagórico da anexação pelos espanhóis. Este movimento especulativo vem na linha da crise de identidade que nos afecta. Não sabemos bem o que somos, nem muito menos queremos indagar acerca do nosso devir.
O fantasma da iberização é um disparate total. É como fazer recuar o tempo para uma era em que os países levavam a sério a possibilidade de anexações pacíficas ou violentas. É como ignorar que a soberania – esse bem que, nos dias que correm, tem tanto de valioso como de insignificante – já não tem o sentido que no antigamente levava os países a guerrearem-se com frequência. Quando se fala em globalização, quando se reconhece a emancipação dos interesses económicos em relação à política, imaginar a iberização é um delírio próprio de quem anda deslocado do tempo.
Como estúpido é argumentar que a crescente presença de interesses económicos espanhóis pode significar um atentado à nossa “soberania”. Estúpido, porque essas mesmas pessoas não erguem o seu descontentamento contra a presença de empresas de outros países. O que confirma a lógica oficial que vem dos bancos da escola, onde somos doutrinados a identificar o espanhol como o inimigo histórico. Esta doutrinação tem consequências bem nítidas na consolidação de um espírito anti-espanhol no subconsciente do cidadão médio. O espanhol está para nós como o cão está para o gato no imaginário popular.
Num certo sentido, é singular que a repulsa anti-espanhola venha sobretudo de sectores mais à direita. São estes sectores que defendem a economia de mercado (contra o intervencionismo arbitrário que as esquerdas não se cansam em elogiar), mas que a negam sob o pretexto dos espanhóis poderem, através da implantação empresarial, liquidar a soberania nacional. A imbecilidade do argumento é demonstrada pela resposta a esta pergunta: quem conhece um país que tenha sido politicamente anexado no cúmulo de um processo de “anexação económica”?
Uma nota final sobre este tema despropositado: alguém parou para se interrogar se a “Ibéria” interessa aos espanhóis? Não desminto que o espanhol é, por natureza, chauvinista e não esconde um comportamento expansionista, com exibição externa do orgulho pátrio. Mas a Espanha está a braços com graves problemas para manter a sua unidade nacional, fruto dos nacionalismos basco, catalão e galego que gritam as suas ambições independentistas. Neste contexto, como acreditar com seriedade num cenário de iberização? Como acreditar que os espanhóis, já afogueados com as suas dissidências regionais, olhassem com agrado para a hipótese da Ibéria – e assim ficassem à perna com mais um problema regional a somar-se aos que já existem?
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