Quase dois meses depois da desavergonhada decisão de não aplicar multas à França e à Alemanha pela violação do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), a Comissão cumpriu a sua obrigação. A esta instituição compete velar pela legalidade na União, como consta do Tratado da União Europeia. Depois de muito ponderar, certamente pela elevada sensibilidade política do assunto, a Comissão avançou com uma queixa contra o Conselho de Ministros por desrespeito do PEC.
Para quem acredita que deve existir disciplina orçamental a constranger a actividade frenética do Estado, esta é uma excelente notícia. Ela prova, ao mesmo tempo, que estão enganados os arautos da desgraça que já tinham decretado a sentença de morte para o pacto. Na verdade, cabe agora ao Tribunal de Justiça da União apreciar a decisão do Conselho que foi tão condescendente para com os repetidos défices orçamentais excessivos dos franceses e dos alemães.
Sem querer entrar no terreno da adivinhação, há alguns indícios poderosos que apontam para a culpabilização do Conselho de Ministros. O Tribunal tem-se destacado pela sua imparcialidade, apenas analisando as questões técnicas que cabem dentro das suas competências, sendo insensível a factores de ordem política que possam perturbar a sua actividade jurisdicional. Como o Tribunal também tem estado na vanguarda, alimentando avanços inesperados no processo de integração europeia, não é difícil prognosticar que a decisão do Conselho que espetou um punhal nas costas do PEC venha a ser declarada ilegal.
Se isto acontecer, os défices excessivos da Alemanha e da França vão ter que ser reapreciados. E não vejo que os políticos nacionais tenham o descaramento para fazer tábua rasa da decisão do Tribunal de Justiça e insistir na desculpabilização dos países infractores. Eis porque sou levado a acreditar que a queixa apresentada pela Comissão pode ser o balão de oxigénio que permite ao PEC escapar da extrema-unção que lhe estava a ser ministrada.
No meio da tormenta, já começam a surgir as vozes do costume a exibir a sua oposição à atitude da Comissão. Uns desfraldam a bandeira do fantasma do federalismo, considerando que por aqui pode passar um perigoso revigoramento dos poderes da Comissão em sacrifício dos governos nacionais. Logo, alvitra-se, existe perigo para a soberania nacional. Outros acham inconcebível que a Comissão tenha a ousadia de enfrentar os governos nacionais. Como se as regras comunitárias, que existem há quase cinquenta anos, fossem de repente votadas ao esquecimento. Como se fosse conveniente ignorar que é obrigação da Comissão funcionar como a guardiã da legalidade comunitária. E que para tal seja obrigada a impugnar as decisões do Conselho sempre que elas forem contrárias às regras que fazem parte do direito da União Europeia.
Se isto ilustra mais ou menos federalismo, pouco me interessa. Os detractores deviam reconhecer que é imoral caucionar o flagrante desrespeito de regras de boa convivência orçamental apenas porque os dois Estados membros mais poderosos não as conseguiram cumprir. Sem esquecer que foram eles os grandes inspiradores do PEC. Tudo isto concorre para o reconhecimento da ilegalidade da decisão que não aplicou as multas àqueles Estados membros. Como também se estende a passadeira para a imoralidade de tal decisão, que prejudica todos aqueles países que se esforçaram por cumprir as metas de disciplina orçamental. Países que agora são penalizados por serem “bons alunos”, enquanto os “maus alunos” recebem uma inusitada recompensa.
Esta notícia foi conhecida no dia de ontem. Hoje, o presidente da república deste país decidiu enviar uma mensagem ao parlamento versando sobre as finanças públicas. Uma mensagem repleta de recados para o governo, como se a política orçamental fosse uma competência do presidente da república. Não se compreende esta intrusão de Sampaio em competências alheias, o que é revelador de uma reprovável falta de solidariedade institucional (nem nos tempos de Eanes ou de Soares tal se viu…).
Também se deve registar a falta de oportunidade da mensagem. Uma das ideias difundidas foi a de que o PEC foi posto em causa, que até está às portas da morte. Como tal, assevera Sampaio, é tempo do governo mandar às urtigas a disciplina orçamental que tem sido perseguida. Parece que Sampaio esteve desatento às notícias de ontem. Um dia depois da queixa formulada pela Comissão (que pode ressuscitar o PEC), como pode Sampaio escolher este momento para insistir na falência do pacto como lenitivo para um novo rumo da política orçamental do país?
A resposta está mesmo diante dos olhos. Pressupondo que as finanças públicas dizem pouco mais que nada a Sampaio, temos aqui, uma vez mais, o dedo dos seus assessores para a área da economia. Alguns dos quais não se cansam em fazer uma travessia no deserto enfatizando a irracionalidade do PEC. Só assim se compreende que o presidente da república tenha aparecido a remar contra a maré, logo no dia seguinte à impugnação da decisão do Conselho que quis pôr o PEC em banho-maria.
Já estou mesmo a ver a comunicação social a aplaudir de pé a mensagem presidencial. Este será mais um acto para a cegueira colectiva que parece inebriar a comunicação social portuguesa, incapaz de compreender que o senhor presidente da república não é um deus com pés de barro.
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