29.1.04

A incontinência verbal de Cadilhe

Cadilhe, o presidente da Associação Portuguesa de Investimento (API), achou que era o momento de mostrar que é um enfant terrible. Que não tem a decência de mostrar lealdade para com quem o nomeou numa base de confiança política. Não hesitando em enviar sinais de uma ambição política desmedida, pois só assim se poderá compreender este grito de emancipação ao afastar-se da política económica do governo que nele confiou a API.

Primeira observação: ao comentar o rumo errado da política económica, Cadilhe exorbitou as suas competências. Ainda que lhe custe muito, ele não se consegue desligar do rótulo de presidente da API. Ora este organismo estatal não está incumbido de analisar a política económica. Ao perorar sobre a política económica, Cadilhe pisou terreno alheio e passou um atestado de incompetência às pessoas que o nomearam.

Segundo comentário: Cadilhe deve ter parado no tempo ao defender ideias económicas que foram ultrapassadas com um virar de página em meados da década de setenta. É o que se observa de tiradas como “um bom défice público deve ser para financiar o esforço de modernização do país ou para resolver uma situação de recessão, com o reforço dos estabilizadores orçamentais” e com “o pleno emprego legitima alguma inflação”.

Se até aqui a sua preferência por uma certa escola do pensamento económico parece implícita, Cadilhe não demorou em fazer uma profissão de fé pública ao alertar que a “filosofia social-democrata da economia, de inspiração keynesiana, está em risco porque não consegue responder a questões como a relação entre défice e equilíbrio das contas públicas ou a inflação e política de emprego”. Cadilhe é keynesiano, quando hoje em dia já ninguém o é. Quando muito temos neo-keynesianos, que se afastaram desta dogmática que perpassa das palavras de Cadilhe.

A derradeira frase de Cadilhe labora em erros sucessivos: primeiro, o PSD é genuinamente social-democrata? Cadilhe, economista a quem escapam os detalhes abstractos e distantes da filosofia política, está mergulhado num profundo equívoco? Segundo, a social-democracia ainda está agarrada ao tal keynesianismo? Cadilhe devia estar a dormir quando Mitterand, Jospin ou Blair (que até estão à sua esquerda) passaram pelo poder, renegando esta escola do pensamento económico e adoptando uma postura mais pragmática.

Tudo serviu para Cadilhe criticar a política económica: as obras públicas sumptuosas são um erro grosseiro (Expo 98 e do Euro 2004 – e aqui tem razão); o aperto orçamental é um obstáculo ao progresso do país; o Pacto de Estabilidade e Crescimento e os malditos “eurocratas” são outros culpados da desdita que vivemos. E, pasme-se, “a Grécia não quis entrar na antecâmara do euro. Nós entrámos e cavámos uma regressão profundíssima”. O que é um delicioso acerto de contas com o passado e com quem o nomeou para ministro das finanças há mais de quinze anos – Cavaco Silva, o responsável por colocar Portugal na rota da União Económica e Monetária.

Já que ninguém no governo parece ter despertado de um sono profundo para interpretar as palavras de Cadilhe; já que não há quem no governo seja capaz de retirar as ilações deste caricato episódio, abrindo a porta da saída a Cadilhe; porque razão não é o próprio Cadilhe que, num acesso de dignidade, coloca o seu lugar à disposição? Apego ao poder (não será a resposta?).

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