27.1.04

Morte maldita

Tenho uma convivência muito difícil com a morte. Por ser agnóstico, a dogmática cristã de que há vida depois da morte não me diz absolutamente nada. Não consigo encontrar o conforto, que acompanha os crentes, de que extinta a chama da vida terrena a alma perdura a sua existência numa outra dimensão. Não. Para mim a morte é o fim de tudo. Nada mais há para além da morte. Com ela deixo o mundo e passo a ser matéria inerte, um cadáver feito coisa. Por isso é muito difícil encarar a morte de frente. Assumo a covardia de fugir de tudo o que possa ter a ver com a morte. Fujo de funerais, de cemitérios, do dia dos fiéis defuntos. Porque teimo em recusar admitir que um dia será a minha vez de deixar o mundo dos vivos. Por isso é que costumo dizer, em tom de brincadeira (que é, ao mesmo tempo, uma ténue manifestação de esperança), que vou viver até aos 96 anos com plena vitalidade.

É quando a morte passa mesmo ao lado que dou conta como a vida é frágil, tão frágil. E ao mesmo tempo enalteço todos os dias que vivi até hoje, mesmo aqueles que sejam o repositório de tristeza, de infelicidade. Porque são dias de vida. Porque a tristeza, a amargura, a infelicidade, são más notícias que a morte converte em boas novas – as boas novas de alguém que tem a felicidade de estar vivo.

Quando vejo como reagimos, como colectivo, à morte, como nos deixamos afundar por uma dor insuportável que testemunha a tristeza pela pessoa perdida, questiono-me se esta nossa tendência para a dor colectiva não é a pior reacção à morte. Não vou dizer que a morte deva ser festejada. Afinal, há uma pessoa querida que deixa de estar no nosso convívio. Mas porque não viver a dor encerrados no nosso íntimo? Porque não, em grupo, tentar desfazer a carga negativa que a dor da morte tem para cada um de nós? Porque não, como última homenagem à pessoa que deixou de estar entre nós, recordar os momentos bons que essa pessoa nos proporcionou? Numa comunhão que desfaça a carga negativa de velórios e funerais, que afunda num manto de tristeza e de angústia as pessoas que, ficando entre os vivos, se condoem com a perda do morto.

Recordo-me da cena final do filme Philadelphia. Tom Hanks, no papel de um advogado que viu a sua vida ceifada pela SIDA, era alvo da última homenagem de seus familiares e amigos. Todos estavam reunidos na sua casa. Um vídeo era reproduzido, lembrando os momentos felizes da vida da personagem. Não havia choros, nem rostos sorumbáticos a destilar o pesar pela perda do ente querido. As pessoas conviviam umas com as outras, relatando as melhores recordações do seu contacto com quem tinha acabado de morrer. Pergunto-me se esta não é a melhor homenagem que se pode prestar a alguém que faleceu. Pergunto-me se não é a melhor forma de contornar a veia demoníaca que a morte transporta consigo. Para todos os que ficamos no mundo dos vivos, é a melhor solução para não sermos invadidos pelo fantasma da morte. Para diminuirmos o impacto da morte, que um dia há-de bater à nossa porta. Bem sei que os costumes sociais instituídos são uma poderosa barreira a esta inversão de mentalidades. Mas no mundo tudo muda com o tempo.

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