Depois do referendo de 1998, eis que o tema volta à praça pública. As fracturas na sociedade portuguesa emergem de novo, perante a possibilidade de se legislar um regime mais favorável para o aborto ou de realizar um novo referendo. Os políticos andam num frenesim, ansiosos por conquistar mais atenção dos cidadãos. Quando, na verdade, é lamentável que este assunto seja trazido para o teatro da política. Porque se trata de um tema que interfere com o mais íntimo de cada um. Porque – mais importante ainda – invade um direito individual sobre o qual não deviam existir intrusões. Eis porque os políticos deviam ficar fora do assunto, em vez de tentarem obter proveitos oportunistas e perversos, como se fossem o abutre sempre à espreita de debicar uma carcaça fétida.
Este tema não devia gastar as energias da sociedade. Porque não deveria, sequer, chegar a ser um problema. Pura e simplesmente, o aborto deveria ser um direito concedido às mulheres que não desejam levar uma gravidez até ao final. Independentemente das motivações (o que poderá ser chocante, admito – pelo menos face às convenções dominantes). Sem descambar no folclore habitual dos movimentos que dizem defender os direitos das mulheres, e das esquerdas que se agarram com oportunismo a esta causa, a verdade é que cada mulher tem o direito de dispor livremente do seu corpo. Diria mais, para ser rigoroso e não descambar para um ultrapassado discurso sexista: cada ser humano tem o direito de dispor livremente do seu corpo.
Os que convocam razões éticas na luta contra o aborto agarram-se ao direito à vida do feto. Nem sequer vale a pena discutir a partir de quantas semanas deve o feto ser considerado um ser humano, para logo se concluir que o aborto equivale a um assassinato. Este exercício é uma falácia. Porque os nascituros, enquanto permanecem no ventre da mulher, não podem manifestar uma vontade própria. A sua existência depende de um outro ser humano. Sem a mãe que os transporta, estes nascituros nada são (em termos de direitos).
É aqui que a direita conservadora, presa aos preconceitos da religião, falha nos argumentos que utiliza. Uma direita que, nestas ocasiões, não hesita em ceder aos clamores totalitaristas da religião que a levam a esquecer o que de mais fundamental existe na condição humana – a liberdade individual. Aliás, é exactamente pelas conhecidas entorses às liberdades individuais que as esquerdas não podem reivindicar uma superioridade moral neste tema.
Mais lamentável ainda é a opinião dos que são favoráveis à despenalização do aborto. Esta opinião encerra-se num equívoco. Traz consigo um cheiro a hipocrisia. Despenalizar é manter a aura negativa de um crime para o qual a sociedade, com a sua benevolência, decide não aplicar as penas que estavam antes em prática. O ónus social mantém-se. As mulheres cometeriam na mesma um crime, que passaria sem sanção. Mas o crime ficaria a pesar na “consciência social”. Esta solução é daquele tipo de coisas a que estamos tão habituados num Portugal de brandos costumes e de meias tintas: nem carne, nem peixe.
Enquanto nos mantivermos presos a preconceitos religiosos, filosóficos ou políticos, e teimarmos em espezinhar as liberdades individuais em nome de pretensas garantias que autorizam essas excepções, continuaremos a passar ao lado das questões importantes. Continuaremos a insistir no acessório, desviando a atenção do essencial. E a manter o mau hábito de acharmos que temos que opinar sobre comportamentos alheios que apenas dizem respeito a outrem.
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