24.8.04

Ainda sobre os jogos olímpicos: o poder da bandeira

Na prova dos 400 metros, os três primeiros classificados foram atletas dos Estados Unidos. Na cerimónia de entrega das medalhas, só seria hasteada a bandeira dos Estados Unidos. Imagino o orgulho dos norte-americanos a assistirem, embevecidos, à cerimónia. Olharem para os três mastros onde as bandeiras ondeavam ao sabor do vento ateniense, e ver apenas a bandeira pátria. Imagino-os num fervor nacionalista, lágrima furtiva a escapar-se do canto do olho, emocionados com a própria emoção dos atletas laureados, também eles incapazes de esconder a emoção que falava mais alto.

As bandeiras têm muita força nestes eventos. No final da prova dos 400 metros os três atletas dos Estados Unidos abraçaram-se em uníssono a uma bandeira do seu país, percorrendo lentamente a pista de tartan num festejo da façanha. Embrulhados na bandeira norte-americana, em busca de concidadãos presentes no estádio olímpico de Atenas que empunhassem bandeiras do respectivo país, numa comunhão da felicidade que irmanava um povo em torno da proeza desportiva.

De quatro em quatro anos este é um espectáculo que se repete. O esforço físico de um atleta é recompensado pelos louros da vitória. De seguida, o atleta corre pelo estádio em busca de uma bandeira do país para a transportar com a valentia de quem saldou a prova com uma vitória. Assim acontece com todos os países: ontem com os Estados Unidos, a super potência mundial; hoje e amanhã com outros países, sejam eles desenvolvidos ou do terceiro mundo. Os atletas têm que satisfazer o ritual da comemoração da vitória, ao qual está obrigatoriamente associada a bandeira nacional.

Vitoria-se todo um país. O feito de um atleta é reproduzido no sentir colectivo que se revê na proeza desportiva de quem empenhou o seu esforço físico. Como se toda a nação mentalmente concorresse para esse esforço físico, para depois partilhar com o atleta a glória de ter arrecadado a medalha de ouro. A minha intuição é de que os atletas são instruídos para o ritual da bandeira. Presta-se tributo a todo um país que contribuiu financeiramente para que o atleta pudesse estar presente nos jogos olímpicos. Será o corolário de anos e anos de subsídios estatais para que o atleta se concentrasse no treino, para potenciar as suas aptidões e maximizar as possibilidades de sucesso. Tudo isto custa dinheiro. Esses recursos vêm do erário público, são um sacrifício pedido aos contribuintes pelos impostos que pagam. Eis como se justifica o reconhecimento do atleta vitorioso ao empunhar a bandeira do país nos festejos que se seguem à vitória.

O país, por sua vez, sente que o seu dinheiro foi bem empregue. A vitória faz bem ao ego nacional. Por um lado, há uma vertente interna: reforçar os laços de identificação colectiva. A nacionalidade pode ser um conceito pouco mais do que vago, mas é nestas alturas que emerge uma identificação do colectivo que se vê representado naquele herói que traz o sucesso para casa. O herói é “um dos nossos”, daí o direito à glória que personifica o orgulho de toda uma nação. Mas há também uma dimensão externa: porque a vitória “do nosso” representa uma afirmação de superioridade em relação aos adversários dos outros países. Manifestações como os jogos olímpicos servem para alimentar uma rivalidade inter-nacional que vai deixando de fazer sentido nos tempos que correm.

Ainda ontem defendi que começa a deixar de fazer sentido a glorificação nacional que está impregnada nas vitórias olímpicas. Faria algum sentido no tempo da guerra-fria, em que a rivalidade era espremida ao máximo como espelho da superioridade de um bloco em relação ao seu rival. Ultrapassadas as agruras da guerra-fria, os desafios são diferentes. Agora, o “inimigo” (que sempre tem que existir) encontra personificação nos terroristas árabes sem rosto, que espalham o terror indiscriminadamente e sem aviso. Que se saiba, esse antagonismo não foi emulado na competição olímpica.

Há quem se agarre à tradição olímpica para justificar a competição nos moldes em que ela se desenrola. Esse é um falso argumento. Tradição por tradição, é mais interessante recuar no tempo, aos primórdios dos jogos olímpicos na era da civilização grega, e atestar que os participantes não surgiam em representação de países, apenas em nome individual.

A história não deixa mentir: os conflitos que têm mergulhado a humanidade no obscurantismo radicam na divisão dos homens, separados que estão por espartilhos – sejam fronteiras, etnias, religiões, ideologias. Não consigo compreender como se evoca o “espírito olímpico” se ele está tão ligado à divisão do mundo em países, com a carga negativa que transporta por ser uma competição onde os atletas se antagonizam em representação de diferentes nacionalidades.

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