5.8.04

A exploração da desgraça alheia

Dois exemplos de como a comunicação social tem uma prática que se assemelha aos abutres que volteiam os cadáveres quentes, prontos a debicá-los até às entranhas. De como as televisões, sobretudo as televisões, abdicam do pudor em nome do espectáculo barato, requentando aquilo que os espectadores julgam ser a emoção. De como em episódios dramáticos, com perda de vidas ou de bens, existe uma obsessão por aproveitar as emoções jorradas pelas pessoas atingidas pelo infortúnio. A comunicação social deixa-se encantar pelo perfume pérfido da revelação das emoções alheias, como se fosse a “boa consciência” do povo, a centelha que desperta a compaixão pelo próximo. Uma terrível obscenidade, que passa por expor ao público a desgraça de quem está mergulhado na miséria, sem nada, sem o ente querido que deixou de habitar o mundo dos vivos.

Primeiro exemplo: anteontem ruiu mais um prédio na baixa lisboeta. Felizmente sem vítimas a lamentar. Na RTP a notícia foi explorada por um repórter, de seu nome Paulo Dentinho, que inaugurou um estilo diferente: cinematográfico, constantes deambulações do repórter pelo local da tragédia, ângulos bem estudados pelo homem da câmara, dramatismo latente nas palavras pausadas do jornalista. Parecia um repórter de guerra a calcorrear a devastação semeada por uma bomba. Deixava bem claro que os prédios em redor expõem o mesmo grau de degradação daquele que tinha acabado de ruir. O local tresandava a miséria.

As perguntas sacramentais a algumas das pessoas que ficaram desalojadas. Em directo o drama de quem ficou sem casa, as lágrimas vertidas, a voz embargada, um destino incerto. O repórter soube aproveitar sabiamente a desgraça destas pessoas que, num ápice, ficaram sem tecto. Como se não fosse suficiente o dramatismo evidente, o jornalista alimentava mais ainda o drama com a encenação que emprestava à reportagem. Mas não há bela sem senão. Dentinho foi apanhado na armadilha da sua própria ganância profissional. Tudo ruiu que nem um baralho de cartas quando, a meio da digressão pelo local, entrevistou uma senhora que se debruçava no beiral de um edifício vizinho. A velha estava ornamentada com quilos de ouro – ao pescoço, nas orelhas, nos dedos das mãos.

Ficam as interrogações: como pode alguém trazer tamanho carregamento de ouro e viver num local tão degradado? Como pode um repórter, que quer chamar a atenção para a pobreza que anda de mão dada com a degradação das condições de vida, deixar passar em branco tamanha manifestação de riqueza? Tal era a sede de mostrar a desgraça de quem por ali vive que acabou traído pela sua própria emotividade. Que assim o subtraiu da imparcialidade que deve ser apanágio de quem informa.

Segundo exemplo: no mesmo dia, no mesmo canal de televisão, uma reportagem sobre um homem que foi resgatado à força do meio de um violento incêndio que estava a dizimar os seus haveres. Vendo que ninguém avançava no combate às chamas, aventurou-se contra as chamas, pondo em risco a sua vida. As imagens que se seguem foram pungentes: o idoso a ser retirado à força por três bombeiros, vertendo toda a sua revolta por não o deixarem lutar sozinho contra as labaredas; as lágrimas de desespero de que assistia, com os próprios olhos, os seus bens a serem reduzidos a cinzas; a impotência transpirada em lágrimas de raiva.

Tudo foi filmado por uma câmara indiscreta, que não se coibiu de violar a intimidade daquele homem. Como se já não bastasse a desgraça, ainda era necessário expor a desdita aos olhos de um país sempre ávido de contemplar piedosamente a adversidade dos outros. É uma boa maneira de ampliar a devastação interior que estas pessoas sentem quando são atingidas por acontecimentos do género.

Andamos metidos no meio de uma labiríntica confusão. Acreditamos que a difusão da desgraça alheia é imperiosa para cativar a piedade nacional pelas vítimas. Quando, porém, a piedade não passa do interior de cada um de nós, estamos a falar de piedade? Mais me parece que se trata de um sentimento obsceno que desnuda as emoções de quem se vê afectado pela tragédia, para alimentar a comiseração interior que nos faz pensar que somos almas boas. Aquietam-se as consciências através da desgraça alheia de que somos testemunhas. Pobres almas que somos!

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