4.8.04

As certezas

Metem-me impressão as pessoas que só têm certezas”, afirmou um amigo, no meio de uma calorosa discussão, para contra-argumentar uma opinião contrária à sua. Muitas vezes esta é a tirada típica quando alguém embrenhado na discussão de ideias tenta desvalorizar os argumentos do oponente. Procura-se combater as ideias contrárias indo ao fundo das convicções de quem as defende. Questionando a validade das certezas, a intenção é atacar pela raiz os alicerces que suportam as ideias que se contestam. É um simples estratagema para desmontar a razão de quem se nos opõe. À falta de argumentos válidos que sejam um fiel da balança no antagonismo de ideias, usa-se o truque baixo de duvidar de quem se assenhoreia de certezas absolutas.

Lembro-me, já lá vão muitos anos, como um político carismático se aperaltava como senhor das certezas que o guiavam na acção política. Dizia este político que não tinha certezas absolutas, apenas certezas; e que sabia que essas certezas eram inquestionáveis. Quando andei às voltas com o mote preferido pelo meu amigo, lembrei-me do contraponto de que este político é o paradigma.

Primeiro, não percebo qual é a diferença de grau entre “certezas absolutas” e “certezas”. No afã de veicular uma mensagem poderosa – atributo que os políticos valorizam até à exaustão, nem que a mensagem esconda a vacuidade do conteúdo – resvala-se para o pleonasmo. É o que sucede com a distinção entre “certeza” e “certeza absoluta”. Não é verdade que uma certeza é algo de absoluto em si mesmo? Será que uma “certeza apenas” é menos forte do que uma “certeza absoluta”? Pensar que há uma diferença de grau entre os dois “tipos” de certeza é uma contradição. Uma certeza é um absoluto, porque uma ideia que se alicerça com fundamento e reprova o seu contrário encerra em si este absoluto. Por isso não é possível encontrar a diferença entre “certeza” e “certeza absoluta”. São um simples pleonasmo que resulta da retórica política.

Segundo, quantas vezes somos apoderados por uma armadilha que se solta das palavras que proferimos? Sem dar conta, ficamos prisioneiros das nossas contradições, ventiladas pelas palavras traiçoeiras que dizemos ou escrevemos. Quando o tal político afastava do seu espectro as “certezas absolutas” e olhava para as suas “meras certezas” como algo de inquestionável, não estaria ele a reconhecer que as suas certezas eram…absolutas?

Terceiro: de que vale estarmos possuídos de certezas? Decerto que a abertura de espírito é essencial para se olhar para o mundo com flexibilidade contemplativa. Admito que os imperativos categóricos não andam longe da metáfora do burro, que só olha para a frente porque as palas que transporta nos olhos o impedem de ver noutras direcções. Mas uma coisa é afinar pelo diapasão dos imperativos categóricos, das verdades irrefutáveis que permanecem imóveis com a passagem do tempo. Outra coisa é saber-se que a certeza não é intemporal, oscila ao sabor do tempo, é mutável.

Devemos estar munidos de certezas num determinado momento. Por uma questão de identificação, para que elas sirvam como uma bússola que deixa encontrar o norte. Porém as certezas devem ser permanentemente questionadas. É uma exigência intelectual que nos deve levar a ter sempre a porta aberta para interrogar a certeza que possuímos. Umas vezes, para reiterar a certeza – até à próxima vez que ela passe pelo teste da dúvida. Outras vezes, para deixar cair a certeza e encontrar uma outra que a substitui. Mas é sempre uma certeza. Ainda que diferente da certeza substituída, é uma certeza.

Não é fácil estarmos ausentes da certeza. Por mais que a rebeldia de espírito assome à superfície e queira apregoar um salutar espírito anárquico, as certezas são imanentes ao ser humano. Mesmo quando alguém diz que não possui certezas de espécie alguma, essa é uma certeza. E se há riqueza na certeza que nos invade, é sabermos que a nossa certeza deve ser contrastada com a certeza dos outros, quando antagónica à nossa. Para que haja a possibilidade de se moldar a nossa certeza às lições que vêm das certezas alheias, revelando o carácter fluído da “certeza”. Admitindo que os imperativos categóricos são espasmos de autismo de quem se recusa a admitir que o mundo pode ser diferente da forma como ele é olhado no momento em que nos situamos.

Voltando ao político carismático: talvez tenha sido induzido em erro ao distinguir “certeza” de “certeza absoluta”. O que ele teria querido representar pela categoria da certeza absoluta seriam os imperativos categóricos, os dogmas que nascem e morrem com a mesma pessoa, insensíveis ao tempo e à mudança. Não a certeza, que é absoluta num certo momento mas dotada da necessária flexibilidade para ir oscilando com a passagem do tempo.

2 comentários:

Anónimo disse...

Mas sempre há as «certezas práticas» e as «certezas intuitivas». E as «certezas imbecis». Ou não? Se tudo «é», conforme o olhar de quem vê, também o amigo do felino lá teria a sua razão,!absoluta!. Eu voto no amigo do felino, contra as «certezas de uns mais certas do que as certezas de outros»!!!! (Políticos carismáticos é que desconheço.!!)

Anónimo disse...

«A doutrina perfeita nem ofende a multidão nem se arroja a seus pés. Não é feita de belas palavras nem dum folclore de atitudes. A natureza combate pelos justos. Essa natureza é a fé.» (Agustina)

Ainda a propósito de certezas... e boa noite.