20.8.04

Mezinhas e santos milagreiros

Precisando vacinação contra o tétano, desloquei-me a um centro de saúde. Não me recordo da última vez que fui a um local do género (o que desmascara o atraso de quatro anos com que o reforço da vacina anti-tetânica aparecia no boletim…). Ao entrar no edifício, gente e mais gente, acotovelando-se nas três filas ordenadas para diferentes finalidades. Velhos e crianças destacavam-se entre a clientela.

Enquanto aguardava pela minha vez, uma senhora que estava no banco ao lado entrou em conversa com uma enfermeira e outra cliente acabada de chegar. A senhora ao meu lado não tardou a revelar, alto e bom som para quem a quisesse ouvir, que padecia de uma enfermidade que tinha obrigado a tratamentos de radioterapia e quimioterapia. Ao jeito das alcoviteiras que se especializam em dar à língua, as duas afivelaram um diálogo que girou em redor da doença da primeira. A jovem enfermeira, contrariada mas estóica na necessidade de fazer o frete em acompanhar o diálogo, assistia sem soltar uma palavra. Ao fim de poucos minutos, as duas senhoras já mantinham um diálogo como se conhecessem há longos anos.

Também não demorou muito tempo até que a senhora saudável começasse a desfiar conselhos não médicos para curar a maleita. Sugeria que a doente se deslocasse à Santa Rita (“Santa Ritinha”, tal foi a forma como carinhosa se referiu, de forma repetida, à santa). Porque esta era a santa “das causas difíceis”. A senhora que tinha sido acometida pela doença retorquia com outro santo dotado de propriedades medicinais idênticas: o “S. Bentinho” (ipsis verbis) da Porta Aberta, no Gerês. Pelo caminho, a doente lamentava-se que já por três vezes esteve para ir a Fátima, mas diversos imponderáveis tinham abortado a deslocação, para sua insatisfação.

Não vou, porque não posso, pôr em causa a fé das pessoas embrenhadas numa religiosidade intensa. Mas intriga-me o comportamento habitual das pessoas que cultivam a sua religião, que se servem dos médicos sempre que são acometidas de doenças, e que olham para as mezinhas e para os santos milagreiros como a tábua de salvação quando as nuvens sombrias começam a pesar sobre as suas cabeças com o peso do chumbo .

Parece uma atitude de descrença na ciência, nos tratamentos proporcionados pelos médicos. Ainda que frequentem com assiduidade hospitais, centros de saúde e consultórios médicos, porque a necessidade de atenuar o sofrimento os leva a tais locais, sentem que isso não basta. Depositam a sua confiança nas propriedades milagrosas de um qualquer santo, que entretanto foi cultivado pelo povo como possuindo tais qualidades. É um efeito bola de neve: começou algures, em tempos que se perdem na memória, o movimento foi crescendo e implantou-se com tal força que não se questionam os efeitos milagrosos. Ainda que sejam repetidos os casos em que o santo não pode socorrer a pessoa minada pela doença, porque a ciência não faz milagres e os santos não conseguem ultrapassar os imponderáveis do metabolismo.

Os casos em que os pedidos de milagre não são atendidos são arrumados na prateleira do esquecimento popular. Porque há que manter a fé nos santos milagreiros, como o cimento necessário de uma fé popular que se desvia dos dogmas em que a sua religião se filia. Quantas vezes é a medicina que sara os pacientes e o povo atribui a cura ao milagre encomendado ao santo? A crendice popular tem algo de contraditório com os dogmas da igreja. Mistura-se fé com superstição, uma mistura explosiva ignorada pelos sacerdotes a quem interessa, acima de tudo, manter um rebanho fiel e dependente. Mesmo que esse rebanho resvale para as costumeiras mezinhas que são a negação das ideias professadas pela Igreja.

Esta eterna dependência popular representa a falta de fé nas próprias pessoas. O povo descrê de si mesmo, acha que a solução para os seus males o transcende, se encontra algures no exterior de si mesmo. É a imagem reiterada da alienação popular que exprime a negação da individualidade de cada ser humano. E a falta de coragem para assumir essa individualidade de corpo inteiro, auto-negando a possibilidade das soluções partirem de dentro de cada um de nós em vez de serem encontradas no exterior – seja na fé, na crendice personificada nos santos, numa constelação de práticas supersticiosas, ou nos outros como panaceia para os males próprios.

2 comentários:

Anónimo disse...

Como diz um amigo comum, estou estupefaciente!
Acreditas mesmo na "possibilidade das soluções partirem de dentro de cada um de nós em vez de serem encontradas no exterior"? Mesmo em caso de doença?
Nesse caso, acreditas também que é possível "ultrapassar os imponderáveis do metabolismo" a partir de dentro. Ou não?

Sabes, os comuns mortais gostam de manter um elo que os ligue a uma suposta dimensão divina. Nenhum de nós sabe se essa dimensão existe, mas é reconfortante acreditar nela. O que difere entre estes crentes é a forma de se relacionarem com o divino. Há quem o faça em atitude subserviente (são o teu "rebanho fiel e dependente"), e há quem o faça de igual para igual (estes são os que contrariam a tua frase "O povo descrê de si mesmo, acha que a solução para os seus males o transcende, se encontra algures no exterior de si mesmo").

Como já disseste noutros textos, és "profundamente ateu". Vou gostar de acompanhar o teu percurso. Tenho curiosidade (saudável) de ver como um "profundamente ateu" enfrenta os imponderáveis dessa nova aventura pessoal que te espera daqui a dois meses. Isto não é uma provocação. É dizer: reajas como reagires, digas o que disseres, estaremos contigo porque gostamos de ti.

Mesmo que só acredites na ciência e no poder da individualidade (contradição?!?).

Connecting People

Anónimo disse...

e quando acreditamos que a medicina cura tudo e esta nao tem solução para os nossos problemas?
agarramos a quê?