10.8.04

Os insultos são mesmo insultuosos?

A linguagem muda com o tempo. Estamos habituados a que certas palavras, quando utilizadas num determinado contexto, percam o seu valor literal. Estas nuances semânticas surgem a preceito quando damos conta da generalização de palavrões na linguagem corrente, mesmo na recorrência do insulto fácil com que nos referimos a outros que nos pisam os calos. A pergunta que se impõe é esta: somos fiéis ao que dizemos quando resvalamos para a lógica do insulto, ou trata-se apenas de uma nova idiomática que não pretende ser insultuosa?

O espaço e as diferentes tradições semânticas jogam uma palavra importante. A queda para o palavrão é recorrente nos países que falam a língua inglesa. Ainda que esta tendência seja volátil – nos Estados Unidos ela é mais visível do que no Reino Unido – vê-se como a linguagem corrente aparece fartamente entremeada de calão e de palavrões. É curioso ver como em certos filmes as legendas se subtraem a uma tradução fidedigna desses palavrões. Sendo filmes que retratam a vida real, tentam reproduzir os diálogos entre pessoas comuns, para situações comuns – afinal, um espelho do dia a dia. Mas quando vemos o resultado ao ler as legendas, ressalta o pudor do tradutor, que se recusa a ir tão longe quanto a tradução literal de tais palavrões representa na língua portuguesa (com algumas excepções).

Este pudor não deixa de ser intrigante no caso português. Usamos e abusamos dos mesmos palavrões – e de outros que a língua inglesa não utiliza com tanta abundância – e mascaramos a realidade quando somos chamados à tradução para o português. Basta andar pela rua com os ouvidos bem atentos. Basta ir a locais públicos onde há ajuntamentos populares, escutar a animada conversa de uma roda de amigos. Ou assistir às discussões na via pública, quando há desacatos ou quando automobilistas se envolvem em altercações motivadas pelo trânsito ou por acidentes de viação. Nessas ocasiões o relambório de palavrões solta-se com uma facilidade inusitada. Sem olhar a idades e classes sociais, que nisto de soltar a língua para o palavrão a democratização é plena.

Ao descair para o insulto, é interessante averiguar se se trata de insulto ou se as palavras insultuosas encerram uma transformação semântica que altera o seu sentido literal. Por exemplo, quando alguém dispara para outrem, no meio de uma acalorada discussão, “vai-te f****”, há que extrair o sumo da expressão e analisá-la no contexto em que ela é proferida. Sobretudo quando se trata de um “insulto” entre homens, será que esta expressão é um insulto em sentido próprio? Partindo do pressuposto que o segundo verbo remete para o acto sexual, e admitindo que a pessoa a quem tal “insulto” é dirigido não é assexuada, não vejo como se pode interpretar aquela expressão como um legítimo insulto. Pelo contrário, é um convite para que o destinatário vá fazer algo que ele tanto gosta – presume-se que com uma pessoa diferente daquela que prefere a expressão…

Outro exemplo: quem já se deslocou a um estádio para assistir a um jogo de futebol sabe como os adeptos, inflamados pela clubite que os cega, disparam impropérios a torto e a direito. Os árbitros são um dos alvos preferidos, sempre olhados com suspeição, porque se desconfia que entram em campo preparados para prejudicar a equipa de que se é adepto. Ao primeiro deslize o árbitro é inundado com uma enxurrada de insultos, que normalmente vitimam a sua progenitora. Ao proferir estes insultos, os espectadores põem em causa a honorabilidade da mãe do árbitro. Sem sequer a conhecerem, não duvidam em acusar o árbitro de ser um “filho da p***”.

A serem levados à letra, estes insultos davam pano para mangas. E serviriam para inundar os tribunais com acções destinadas à reparação da dignidade dos ofendidos, levando a já desorganizada justiça ao caos. A verdade é que na maioria dos casos em que estes insultos são atirados para cima de alguém, a pessoa visada não reage. Será um sinal de que a linguagem corrente vem digerindo a nuance semântica que leva à reinterpretação destas expressões. Em vez de se olhar para estes impropérios como expressões de insultos que tentam denegrir a pessoa visada, cada vez mais são uma forma de apoucar sem insultar.

O interessante da questão é reconhecer como as palavras podem ser subvertidas pela emoção de quem as utiliza, ou apenas pela utilização recorrente que transforma o seu significado original. Presos aos brandos costumes de que somos fiéis depositários, raramente insultamos o outro mesmo quando nos deixamos envolver pela utilização de palavras que são literalmente insultuosas.

2 comentários:

Anónimo disse...

Considero este um artigo do C******!!!!

Ponte Vasco da Gama

Anónimo disse...

o C***** tem jeito para isto; com o tempo perceberá que existe um outro mundo para além dos fdp que critica.

sou o C***** ( já soa a palavrão para ti não?)