17.8.04

É o marketing político que comanda?

Há dias Ferro Rodrigues sentou-se numa mesa para ler uma comunicação, com ar circunspecto e indignado, depois de se ter sabido que o demissionário director da Polícia Judiciária tinha envolvido o seu nome no processo Casa Pia. Vou fugir do conteúdo e da estratégia escolhida pelo homem que abandonou o leme do PS (até porque, lá diz o povo, não é de bom tom “bater em mortos”).

Houve um pormenor que cativou a minha atenção: o aspecto impecável com que apareceu perante as câmaras de televisão, numa combinação de casaco-camisa-gravata que fez adivinhar o dedo de um consultor de imagem. Apesar de Ferro estar em férias; apesar da comunicação ter sido feita em Sintra, onde passava o seu período de descanso; apesar de Ferro ter anunciado apenas com um par de horas de antecedência que ia dirigir a palavra ao povo em defesa da sua honra beliscada pela imprevidência do anterior director da PJ.

Notou-se que havia dedo dos consultores de imagem, que em pouco tempo conseguiram arranjar a fatiota impecável para Ferro Rodrigues aparecer perante o público e não ver a sua imagem prejudicada – logo, para que a mensagem chegasse aos destinatários com credibilidade. Horas mais tarde, quando fugazmente dei de caras com a mesma notícia noutro canal de televisão, vi imagens que antes não tinham sido transmitidas. Vi Ferro a subir as escadas abraçado à sua mulher, um quadro compungido e, adivinho, também cirurgicamente preparado. Vi Ferro a usar umas calças beijes, denunciando uma falha que os consultores não souberam prevenir. As calças de veraneio não condiziam com o ar impecável que Ferro trajava da cintura para cima. A pressa foi inimiga do óptimo: não foi possível preparar com minúcia todos os pormenores, e o ex-líder do PS apareceu com uma imagem híbrida – da cintura para cima, o ar bem cuidado do político; da cintura para baixo, o homem que se encontrava de férias, a quem não foi possível encontrar em tempo útil umas calças que traduzissem uma ambiência mais solene, a condizer com o ar de estadista apunhalado pelas costas.

A importância dos consultores de imagem para a feitura de políticos é um dado adquirido. Tudo se passa como se fabricassem políticos numa proveta, dentro de um laboratório. Tal como abundam os peixes que vêm dos tanques de aquacultura, os políticos de hoje são um produto dos especialistas em marketing político. O engenheiro Guterres, com a sua pose artificial e minuciosamente estudada, era o produto de uma equipa de consultores brasileiros – que nestas coisas estão um passo à frente dos congéneres portugueses. Paulo Portas é um mestre na arte da postura, que descamba para excessos e tiques que têm um efeito contrário – levam-me a olhá-lo como um produto cheio de artificialidade.

Os políticos não são os homens, apenas a cara. Sofrem transformações cuidadosamente estudadas para se moldar uma imagem cativante para os eleitores. Chegando-se ao cúmulo de enganar a natureza (e, por arrastamento, os eleitores): na campanha eleitoral para as últimas eleições autárquicas, o candidato socialista à câmara do Porto aparecia com cabelos brancos na moleirinha, o local onde está implantada uma peruca (que se saiba, nas perucas não crescem cabelos de espécie alguma, nem eles esbranquiçam com a marcha do tempo…).

Cada vez mais é o exterior, o embrulho, que contam; o conteúdo, a substância, desvalorizados. O público é educado para privilegiar o exterior sem dar valor à mensagem veiculada. Que, na maior parte das vezes, é vazia, redundante, preenchida por lugares-comuns. Uma mensagem que se assemelha a uma laranja que, depois de espremida, verte umas míseras gotas de sumo.

Os homens que se entregam à ambição política são forçados a entregar o seu destino nas mãos dos consultores de imagem. São estes que detêm o monopólio da informação sobre as preferências dos eleitores. Como se fosse possível saber tudo e mais alguma coisa acerca das preferências de milhões de eleitores. Claro que é por amostra que funcionam, com os riscos inerentes à teoria das probabilidades. O que faz com que os consultores sejam empurrados para a dedução: quantas vezes aconselham uma gravata discreta em vez de outra com cores mais garridas, por considerarem que é nessa característica que se revê a maioria da população? Mas este exercício não será apenas um retrato das escolhas pessoais dos consultores de imagem, sem que seja o espelho fiel das genuínas preferências do eleitorado?

Os consultores de imagem dominam o fenómeno político. Eles têm os políticos na mão. São eles que acabam por deter o poder supremo, em mais uma entorse à representatividade que é o alicerce da democracia em que aprendemos a viver.

Sem comentários: