11.8.04

Leituras de férias: “Contos Proibidos – Memórias de um PS Desconhecido”

Acabo de ler o livro de Rui Mateus, “Contos Proibidos – Memórias de um PS Desconhecido” (Dom Quixote, 1996), em que o autor retrata a sua experiência dentro do PS, desde a sua fundação em 1973 até aos acontecimentos relacionados com a Emaudio e Macau. É um relato circunstanciado de certos factos que merecem uma reflexão cuidada, sobretudo quando o autor revela episódios que dão um outro colorido à “história oficial” do pós-25 de Abril de 1974.

Mateus vai à génese da criação do PS, numa reunião ocorrida algures na Alemanha, em que ele próprio esteve presente. Logo aí descreve o protagonismo que Mário Soares teve na fundação do PS. Tomamos conhecimento do rol de incoerências que caracterizam a figura: a sua filiação comunista na juventude, que o influenciou logo a seguir à revolução de Abril quando preconizou a necessidade do PCP para a consolidação da democracia; o recuo, quando os comunistas não tardaram em dar mostras dos seus verdadeiros propósitos (Cunhal terá dito que Portugal nunca seria uma democracia parlamentar), o que o levou, na iconografia oficial, a aparecer como o grande combatente contra as tendências totalitárias do PCP (quando, sob a pena de Mateus, quem terá orientado o PS nesse sentido foi Salgado Zenha); o episódio do governo minoritário do PS na sequência das primeiras eleições legislativas, quando tudo aconselhava a um pacto de regime com o então PPD (que, na opinião do autor, poderia ter levado a uma dissolução do PPD dentro do PS – o que também poderia ter motivado a mexicanização do regime político português, como ele anui); para logo de seguida ter dado o dito pelo não dito, no que diz respeito à política de alianças, para constituir uma coligação “contra-natura” com o CDS. Tudo, de acordo com o autor, em nome de uma feroz sede de poder e de protagonismo pessoal que cegava Soares.

O livro não é simpático para Soares. Desmistifica a aura de heroicidade que anda de braço dado com o ex-presidente da república. Mostra como Soares era um político hábil que se perdia em soluções irracionais, porque estava mais preocupado com o seu próprio devir político do que com os benefícios para o PS (já para não falar do bem-estar nacional). Mateus fala com conhecimento de causa: ao dedilhar as páginas do livro são sucessivos os relatos que testemunham a relação de proximidade e de confiança que durante muitos anos existiu entre o autor e Soares. Houve a preocupação de documentar com abundância as afirmações, apresentando uma extensa lista de documentos nos anexos. Nuns casos a “prova documental” é inequívoca. Noutros há alguma inexactidão nos documentos oferecidos. Noutras passagens do livro o autor resvala para a falta de rigor: assim sucede quando cita certos memorandos ou documentos sem fazer uma referência rigorosa à fonte.

No essencial ficamos com uma ideia clara do mundo cão que sempre foi a vida interna do PS. Quando agora se diz, a propósito da luta entre os três candidatos à liderança deste partido, que o PS se assemelha a um “saco de gatos”, trata-se de uma característica que vem do passado. Uma vida partidária feita de intriga, o domínio asfixiante que Soares sempre quis exercer (mesmo depois de ter sido eleito presidente da república, quando se supunha que estivesse desligado do PS), as artimanhas que o velho patriarca nunca hesitou em pôr em prática, o constante “dividir para reinar”. E pensar que este é considerado por muito boa gente como um partido essencial para a vida democrática do país, para a estabilidade do regime político. Pensar que é a gente deste calibre (que sempre pôs os interesses próprios à frente dos interesses do país) que o povo português muito deve pelo que somos agora. Pena que ninguém se interrogue do seguinte: o que poderíamos ser se não fosse a incompetência, a estreiteza de espírito desta gente?

Outros capítulos interessantes são os que exibem a cumplicidade entre as autoridades dos Estados Unidos e Mário Soares. Como este sempre foi o político preferido dos governos e lobbies norte-americanos, independentemente de serem os republicanos ou os democratas a deterem o poder. Nem sequer o PSD, talvez mais próximo dos Estados Unidos numa “escala ideológica”, foi alvo destas preferências. Pelo meio misturam-se negócios com política, um mundo escabroso de financiamentos para o PS que envolve a Internacional Socialista e empresários oportunistas (avisando Mateus que isto não é um exclusivo do PS, estendendo-se aos outros grandes partidos do arco democrático).

Esta cumplicidade teve o seu epílogo com o caso Emaudio, quando Soares – já então na presidência da república – inspirou a constituição de um império de comunicação social para alargar a esfera de influência socialista, como uma forma de perpetuar o PS nos corredores do poder. Os negócios pouco claros, misturados com alguma imprudência de Mateus e do governador de Macau, Carlos Melancia, acabaram por fazer ruir o projecto. No rescaldo apenas a arraia-miúda (que nem o era tanto assim…) acabou por ser condenada, deixando os tubarões sossegados no seu ninho.

Nota-se que o livro de Mateus é dominado pela mágoa, por ter sido abandonado à sua sorte num momento em que caiu em desgraça junto da família soarista. Como tal, poderá estar inquinado por falta de objectividade, podendo os seguidores de Soares e do PS profundo atacar o autor acusando-o de estar contristado pelo escândalo do famoso fax de Macau que o levou a uma condenação de quatro anos e meio de prisão. É possível que sim, notando-se que a amargura do autor possa toldar alguma objectividade. No entanto, passando por cima das considerações pessoais que por vezes resvalam para o exagero próprio de quem está ferido no seu orgulho, a conclusão é de que não existe fumo sem fogo. Mesmo sabendo que Soares e a “família soarista” não saíram beliscados deste livro e do caso Emaudio (os tentáculos são tão poderosos que em breve tudo caiu no esquecimento), fica um registo que não cai em saco roto.

De nada valerá, já se sabe, tal o poder e a incontestabilidade que Soares goza, qual figura impoluta e acima de qualquer suspeita. Da minha parte, que nunca nutri a mínima simpatia pela personagem, este livro trouxe momentos bem agradáveis e serviu para reforçar a imagem negativa que dele tenho.

1 comentário:

Anónimo disse...

Leitura de férias?!?
Não tinhas nada mais leve para ler?
Porque não escreves sobre o que te espera daqui a uns meses? Bonito desafio!

Quanto à crítica ao PS, é perigoso generalizar características de uma mão cheia de pessoas de um partido. O PS, tal como o PSD, e mesmo o CDS, o PCP e o Bloco de Esquerda, têm nas suas fileiras pessoas muito válidas. Infelizmente não são elas que protagonizam a vida política dos respectivos partidos. Têm lugares "menores", mas fazem um bom trabalho (até parece que trabalham numa empresa privada!).

Até sempre,
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