26.8.04

No dorso da solidão

Vagueava em busca de um zénite que sabia não poder encontrar. Palmilhava as ruas da cidade sem destino, apenas para ensombrar a solidão que o mortificava. Abandonado à sua sorte, depois de todos os caminhos transviados que o tinham afastado do mundo, perdida a pista das amizades. Sentia-se desdenhado, sem norte. Por vezes acordava angustiado, ainda a madrugada não anunciava a luz da alvorada, como se lhe estivessem a cravar um punhal no peito. Afogueado, despertava como se emergisse de um pesadelo. Uns segundos bastavam para descer à terra e sentir a terrível sensação de não falar com ninguém há longo tempo. Recostado na almofada, ficava entorpecido, a vista perdida no horizonte a fitar as paredes nuas do quarto. Assim ficava, inerte, pensamentos vogando no nada, o tempo a consumir-se para forçar a vinda do sono que ainda faltava dormir – e que tantas vezes não voltaria e chegar.

Sentia-se um autómato, possuído pela rotina instalada. Sempre as mesmas coisas feitas às mesmas horas, mais as nuvens cinzentas a pesarem na atmosfera. Escassas as palavras trocadas com pessoas: no café, pela manhã, o jornal comprado ao velho da tabacaria, as senhoras do atendimento impessoal ao almoço, as empregadas da caixa registadora no supermercado. Palavras minimais, o bom dia que a educação exige, o muito obrigado quando a neura não pesa sobre a cabeça. Não eram palavras que ecoavam no bem-estar. Eram palavras que se soltavam repetidas, todos os dias, às mesmas horas. Quase sempre com as mesmas pessoas que, apesar dos actos rotineiros do quotidiano, continuavam a fazer de conta que ele era mais um anónimo cliente.

Invadido por um frémito do vazio, nada lhe percorria o interior. Ele próprio via-se um corpo sem nada por dentro, a não ser uma imensa tristeza por estar só. Começara a descuidar a saúde, pois já nada importava na descida ao abismo que se aprofundava a cada dia que passava. Sabia que tinha andado por caminhos demenciais, um passado inquinado por erros sucessivos. Como se recordava da propensão para o abismo, quando colocado perante decisões que lhe trariam efeitos funestos. Lembra-se como uma força incontrolável o empurrava quando chegava às encruzilhadas que o destino lhe preparou. Tomara sempre o caminho errado. Mesmo sabendo que esse era o caminho não aconselhável, o seu instinto levava-o pela vereda íngreme que o haveria de atirar numa queda estrondosa para o deserto onde estava agora exilado.

Era fatal que os descaminhos trouxessem uma pesada factura. E, no entanto, não se arrependia dos trilhos rumados nos tempos idos. Só lamentava como isso foi tumultuoso para si, pelo desdém, pela censura, pelo afastamento de quem tanto queria. Não apontava o dedo à incompreensão alheia. No seu íntimo, sabia que reagiria também assim se outros lhe aparecessem agrilhoados ao mesmo destino. Sabia que pagava pelos actos tresloucados que o tinham colocado para além do precipício.

Não se revoltava contra o desígnio que ele próprio esboçou. Assumia-o com a consciência de que apenas a sua vontade concorreu para tudo o que fez. Lamentava que o destino que escolheu tivesse custos tão pesados, a ponto de o divorciar do mundo que lhe trazia sedimentos de felicidade. De resto, perguntava-se se o exílio forçado, longe de perder a vista, não era a oportunidade para reconstruir a vida, lançar âncoras noutros sentimentos. Reprimido pelo remorso, mas ao mesmo tempo incapaz de aceitar que faria tudo diferente se voltasse atrás, preferia resignar-se ao voto monástico que o ocupava com tanta obsessão. Preferia vegetar numa vida sem sabor, martirizado pela dor incontida que o consumia dia após dia.

Um vulto esguio aparecia reflectido na parede gasta, uma imagem retratada pela luz do lampião. Um vulto decrépito, reflexo de uma energia sem vontade de regeneração. Era ele, sem força nem coragem para se olhar ao espelho, apanhado de surpresa pela luz translúcida que o retratava na parede. Então deu-se conta de como o tempo passa, voraz, e desgasta as veias e os tecidos num envelhecimento atroz. Não podia fazer nada, a não ser deixar o tempo esvair-se em direcção à foz, perder-se na imensidão das águas do mar onde toda a dor se dilui num instante.

(Montijo)

2 comentários:

Anónimo disse...

O sul dá-te uma inspiração renovada e realça o que de bom tens.
Boa estadia pela terra de todos os que aqui estão.

Carter

Anónimo disse...

Sr. Vilamaior,
Este texto é de um cinzentismo atroz. Dá a impressão de que o senhor é advogado e trabalha numa instituição qualquer, tipo pública. Será também benfiquista?
Desejo que os seus dias se tornem mais luminosos futuramente.

Eça