12.8.04

Os descaminhos da justiça, ou as razões para um cepticismo crescente

O episódio das conversas telefónicas do jornalista do Correio da Manhã com pessoas envolvidas no processo Casa Pia traz pormenores reveladores da crise em que a sociedade se encontra. Essas conversas telefónicas foram gravadas e condensadas em não-sei-quantos CDs, que entretanto desapareceram da gaveta do jornalista sem deixar rasto. Pelo meio, o director nacional da Polícia Judiciária foi apanhado no restolho, chamuscado por revelações que ultrapassam o decoro das funções que ocupava.

Nos últimos dias tem-se questionado se ainda faz sentido manter o segredo de justiça, se ele é desrespeitado de forma tão flagrante. Pergunta-se se o segredo de justiça apenas compromete os agentes directamente envolvidos no exercício da justiça, ou se também os jornalistas lhe devem respeito. De novo, a velha questão do ovo e da galinha: na corrupção (porque a violação do segredo de justiça é tangente à corrupção), quem tem mais culpas – quem corrompe ou quem é corrompido (ou se deixa corromper)?

São questões delicadas. Mas este episódio traz sequelas mais importantes. O terramoto vem de trás, de constantes episódios de mau funcionamento do sistema judicial, com inabilidades que fazem descrer numa correcta administração da justiça. Esta é a questão que interessa sublinhar, pelas suas consequências devastadoras.

É costume dizer-se que há três poderes, na lógica da divisão de poderes legada pela revolução francesa de 1789: o executivo, o legislativo e o judicial. Sendo poderes com fronteiras delimitadas, não podem interferir uns nos outros. Daqui resulta a total independência do poder judicial, com a autonomia dos juízes a elevá-los a funções de elevada importância. Sobre os juízes adeja uma aura de imparcialidade. Pelo menos é assim que as criancinhas são ensinadas desde os bancos da escola. Quando algumas delas crescem e vão parar aos bancos das faculdades de direito, também se lhes ensina que um atributo dos magistrados é a sua “irresponsabilidade”. É uma consequência natural da independência que lhes é conferida. Portanto, não se deve interpretar irresponsabilidade no sentido literal da palavra. Significa apenas que os juízes não são responsáveis perante o poder político, só respondem perante as estruturas da magistratura. É esta irresponsabilidade que lhes garante liberdade de autonomia para decidirem sem pressões.

Todavia, como em tanta coisa na vida, há um hiato entre teoria e prática. Quantas vezes somos assaltados por notícias que dão conta de sentenças duvidosas? Quantas vezes se levantam suspeitas da absoluta independência dos juízes, sobretudo quando figuras públicas sentam o rabo no banco dos réus? Assim se questionam os predicados de independência e de irresponsabilidade dos juízes. Pondo-se em causa a sua imparcialidade, afinal o garante de uma justiça credível que seja o contra-peso das arbitrariedades que enxameiam o processo político. E não nos podemos esquecer que os juízes, como homens e mulheres comuns, podem-se afastar da imparcialidade, motivados que são pela subjectividade. Não é difícil ver que a imparcialidade da justiça está a um pequeno passo da mistificação.

Para quem descrê do processo político e via na justiça o refúgio para equilibrar os desmandos da política, concluir que a justiça está mergulhada nesta crise de credibilidade não deixa razões para sorrir. Ver como o segredo de justiça é constantemente esquecido, dando origem a condições de desigualdade que prejudicam uma justiça imparcial, expõe a justiça a debilidades que não se compadecem com a esperança com que a justiça devia ser encarada. E o problema é que a violação do segredo de justiça vem de dentro do próprio sistema. Ou será que os jornalistas estão sempre à porta das secretarias judiciais a acenar com regalias diversas em troca de elementos resguardados pelo segredo de justiça? Não serão, também, os próprios funcionários que contactam os jornalistas e propõem a “negociata”? (Como terá Fátima Felgueiras sabido da decisão que a remetia para prisão preventiva antes que a decisão fosse dada a conhecer?)

O panorama é sombrio. Para quem olha em redor, não acredita no processo político e espera do terceiro pilar (a justiça) uma actuação imparcial que vá contra a arbitrariedade política, não há que esperar muito nos tempos que correm. O pior é que o “quarto poder” emergente (a comunicação social), também é o que é. Daí que o cepticismo não seja uma palavra vã saída da cartola por artes do mau humor. O cepticismo é o resultado da observação do contexto, uma conclusão linear que muito custa a ser extraída – mas que é inevitável face ao estado das coisas.

1 comentário:

Anónimo disse...

A degração de todo o sistema judiciário é simultânea ao colapso dos outros poderes(inclusivé o quarto) perante a ofensiva do grande poder- o económico-o tal poder, a tal mão invisível,que se não for controlado ( através dos mesmos poderes que ele agora corrompe) acabará por minar de tal forma a nossa sociedade que ela acabará por sucumbir,interna e externamente (talvez os nossos filhos já terão consequências práticas desse colapso)
Mas sou optimista, ainda acredito nas pessoas, nas boas pessoas e ( não na réstias) mas no que ainda resta do sistema.
Acredito em mim e em ti, acredito nas pessoas, porque o poder económico ( não é nenhuma entidade mas um conjunto de empresas que não passam de um conjunto de pessoas) acabará por ser subjugado aos interesses básicos do ser humano e da função social de qualquer sociedade - sim as protecções- dos mais fracos, dos incapacitados, das crianças, dos velhos-é para isso que existe a sociedade organizada, para equilibrar, regular e orientar.
Acredito ( ou quero acreditar) que (não) vai ser preciso uma revolução , com o continuar deste descalabro economicista previa que ela surgiria antes de 2100 mas com a evolução apocaliptica destes ultimos 10 anos talvez nossos filhos já participarão nela.Sim equilibrio é disso que estamos a falar.
E não podemos ser ingénuos ao ponto de pensarmos que a degradação de poderes ( não esqueçamos os valores) acontece só em Portugal, ela é uma constante na sociedade ocidental.
Mas acredito nas pessoas, elas irão emergir como o quinto poder emergente- a individualidade a sub cultura e a diferença- facto ainda muito ténue em Portugal mas que se começa a afirmar no resto da sociedade ocidental.

Um abraço

Carter