18.8.04

Estupidificação humana (ou de como há quem se exponha a figuras ridículas e goste)?

Desde que a televisão entrou na fase de “democratização popular”, tudo é possível. Os programas mais bizarros misturam-se com os talk shows para entreter velhinhas, as telenovelas deixaram de ser um exclusivo brasileiro com a entrada da produção nacional nesse segmento. Entre a bizarria que vai ao encontro dos gostos da maioria dos telespectadores, por cá e no estrangeiro há a tendência para a difusão de programas em que os concorrentes se prestam a figuras tristes. Aliás, é a predisposição para essas tristes figuras que lhes traz a prometida compensação monetária.

Sendo pouco assíduo da televisão, apenas posso testemunhar o que a espaços vou vendo quando estou distraído à frente do ecrã. Uma dia destes estava a pedalar no ginásio e, na televisão à minha frente, passava um programa (creio que na MTV) que se desenrolava nas ruas de cidades dos Estados Unidos. Aos olhos de uma multidão frenética, alguns corajosos enfrentavam desafios que se confundiam com sacrifícios, a julgar pela hesitação antes de meterem ombros ao desafio. Ou por beberem líquidos intragáveis, ou porque tinham que se esfregar num chão untado de uma mistela gordurosa e repulsiva, notava-se que as tarefas não estavam ao alcance do comum dos mortais. A troco de um punhado de dólares, para as delícias de um público excitado.

As pessoas que compunham a assistência exultavam de contentamento de cada vez que um tanso avançava para o plateau e se expunha ao ridículo. A coragem tinha a contrapartida do ridículo que advinha do gozo proporcionado aos assistentes na rua – e, adivinha-se, aos fiéis seguidores do programa em casa. No momento em que a bizarria tinha o seu epílogo, dos assistentes vinham reacções que misturavam a exultação com a repulsa. Uma mistura de sentimentos: a manifestação de que eram incapazes de se prestar ao momento arrepiante vivido pelo corajoso de serviço, mas o comprazimento pessoal porque alguém estava disposto a dar espectáculo para a audiência prestando-se à figura ridícula.

Já antes tinha visto, de relance (num intervalo de um filme, com as cenas que se iam ver quando o programa anunciado fosse para a antena), como também por cá aderimos à moda. Num dos canais privados há um programa em que os concorrentes são desafiados a enfrentar as suas fobias, ganhando dinheiro com isso. Vi resumos em que as pessoas se expunham a ingerir batido de miolo de vaca, a comer percevejos de mais variada ordem, a meterem-se dentro de uma banheira infestada de cobras. A diferença estava na ausência de uma plateia a rejubilar em directo com as façanhas que têm tanto de coragem como de humilhação.

Um descaminho dos tempos modernos? Talvez seja tentador arrumar estes programas na prateleira do telelixo que anda tão vulgarizado. Desconfio desta qualificação por um motivo convincente. Há quem se exponha àquilo que as outras pessoas vêm como um acto de loucura, a queda para a figura triste. Quem o faz está no gozo das suas faculdades, exerce a liberdade individual que lhe é inata. Se o faz por dinheiro ou por mero altruísmo (por gostar de divertir uma audiência), é indiferente. Mas não consta que as pessoas que servem de cobaias sejam forçadas à figura triste, como se estivessem de pistola apontada à cabeça num exercício que constrange a sua liberdade individual.

Que seja mais preocupante haver um estrato de pessoas que se diverte com este tipo de programas é um outro problema. Sobretudo por se notar a tendência de sermos educados, via televisão, a encontrar tipos diferentes de entretenimento que passam cada vez mais pela humilhação do próximo. O que poderá ser motivo de inquietação é a tendência contemporânea de nos divertirmos com o mal dos outros, com a exposição das suas debilidades, com a predisposição para fazerem coisas que nós seríamos incapazes de fazer.

Quanto ao resto, desde tempos distantes há relatos dos bobos da corte que divertiam quem a frequentava. Recuando mais no tempo, a história do teatro está ligada à necessidade da população ser entretida nos tempos livres, um tónico para desanuviar a alma depois das horas e dias passados em árdua labuta. O princípio vem de trás, de tempos remotos. O que difere agora é a modalidade de entretenimento que prende a atenção das pessoas. Ainda que seja possível colocar o rótulo de telelixo neste tipo de programas, ainda que seja possível discutir que mecanismos doentios levam o cidadão comum a divertir-se com as palhaçadas humilhantes de outrem, na verdade este é um mercado como qualquer outro. Depende da interacção de vontades livres: seja dos que se expõem às bizarrias, seja dos que exultam de felicidade por verem as figuras tristes de quem se presta a surgir nesses programas. Sempre houve palhaços; temos agora uma categoria moderna de palhaços.

1 comentário:

Anónimo disse...

Para mim, a "vantagem" destes programas é que o espectador está, à partida, preparado para toda aquela encenação. É feito com aquele intuito de palhaçada.
E o que dizer de outras coisas que também vemos na televisão (por exemplo, certos dialogos na Assembleia da República) onde supostamente assistimos a coisas que não são "filme" e acabamos a assistir a palhaçadas do género?
Pegando no teu texto de ontem, acabamos por ter também na nossa classe política, outra fonte de espectáculo. A ida do deputado Pedroso para a Judiciária, a sua libertação, os diálogos de gosto duvidoso que tão frequentemente ouvimos na discussão de assuntos sérios.
Confesso que me preocupam mais estes espectáculos. Os outros, haverá sempre um nicho de mercado para eles, mas fazem parte do "showbusiness" e são vistos como tal. Estes, os dos nossos políticos (salvo raras e honrosas excepções) são espectáculos com consequências imediatas nos nossos bolsos. Somos governados por incompetentes (quer quem está no governo, quer quem está na oposição) preocupados em gerir imagens/posições secundarizando a função para a qual foram eleitos.
Um "Zé Maria" não faria pior se pertencesse à nossa classe política...

Ponte Vasco da Gama