29.1.15

Não era uma vez (o roubador de histórias, o roubador de sonhos)

Robert Wyatt, “Hasta Siempre Comandante”, in https://www.youtube.com/watch?v=knaKOMgZi4M
Um jantar. Dois jantares. Em roda de amigos. Umas conversas de café. Algumas mensagens trocadas – por email e por telefone. O tema passara a ser imperativo. As eleições na Grécia eram o mote para o resto dos países. Tinham de ser. À maneira de imperativo categórico. Para restaurar a justiça que andava ausente há tanto tempo. Ele fizera-se porta-voz da mudança. Convenceu-se que tinha de catequizar mais gente, convencê-los da oportunidade única de mudança que tínhamos nas mãos.
- É agora ou nunca. Temos de ter um Syriza aqui. O povo não merece ser sacrificado por mais tempo. Não achas?
- ...Talvez...não estou muito convencido que soluções radicais...
- ...Não caias na armadilha. Não te alies aos conservadores apavorados com o despontar da esperança. Não dês o braço aos deploráveis tutores da finança. Olha para os pobres. Para os miseráveis que ficaram ainda mais miseráveis. Se não chegar, olha para ti, que perdeste bem-estar e te apoquentas com a miséria dos outros. A tua consciência lida bem com este fascismo implícito?
- Esta vaga de justiça social vai vingar?
- Depende de nós. De mim, de ti, de outros que consigamos convencer...
- ...Não me peças para ser como os pregadores de fé, de porta em porta a angariar clientes.
- Não é isso. Fala com os teus conhecimentos. Sei que foi difícil convencer-te desta causa, bem sei que as tuas ideias não combinam bem com o espantalho da “extrema-esquerda” que os detratores insidiosamente nos colam.
- (Pensando com os seus botões, em surdina: quem te diz que já me convenceste?) A ver vamos. Quero ver a experiência da Grécia. Depois te direi se estou convencido.
Uns meses depois, em antevéspera de eleições, voltaram a encontrar-se. A causa veio para dentro da conversa:
- Diz-me: estás convencido da justeza desta causa? Vais votar em consciência, como a tua consciência, se estiver afinada pela justiça social, manda?
- ...Sim...isto é...pois, convenceste-me. Não se fala mais disso. Até a outro dia, que agora estou com pressa.
No dia das eleições, enquanto o pregador de esperança votava orgulhoso no partido da extrema-esquerda que prometia toda essa esperança (só não se revelando em qual deles), o outro fazia o que a consciência mandou. E, mandando às malvas a catequização ideológica, escolheu quem lhe aprazia.
- (Pensando outra vez em surdina, só para si: era o que mais faltava, tanta pressão, tanta sabotagem intelectual, como se eu não soubesse pensar pela minha cabeça. Julga que vou votar na extrema-esquerda – ou esquerda radical, como eufemisticamente lhe chama. Não vou. Sei pensar pela minha cabeça. E não alinho em modismos nem em imperativos categóricos. Prefiro a liberdade de pensamento.)
No dia seguinte, os adeptos da esperança grega estavam desorientados. As sondagens não se confirmaram. A vitória esteve muito longe de se aninhar no regaço da extrema-esquerda, como devia ser e apregoavam as sondagens. Não sabiam o que se tinha passado. Talvez muitos que se julgava arregimentados tivessem desertado à última hora, em plena mesa de voto.

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